Academia Beco Novense
de Letras.
Antonio Samarone de Santana.
Até os idos de 1960, a Rua do
Beco Novo era o centro cultural de Itabaiana. Entre outras esquisitices, a rua
tinha o seu ateu, José Nogueira da Silva, conhecido por Araponga. Menino de
pouca conversa, obstinado, autodidata; deixou a escola ao concluir o primário, por
não suportar as pancadas da professora Branquinha. A mestra usava e abusava da
sabatina, errou qualquer besteira, à palmatória comia no centro. Sem contar os
castigos cruéis e humilhantes. Muitos mijavam nas calças, com as suas ações
disciplinadora. Araponga desistiu.
Aos 16 anos, Araponga já era um
bom sapateiro, apreendeu o oficio com o Pai. Poderia ter parado por aí, casar,
criar família, levar uma vida simples, como tantos. Mas ele queria voar,
descobriu que igreja católica tinha uma biblioteca, e que emprestava livros de
graça. Meteu as caras. Não desconfiava o que iria encontrar. Uma biblioteca
católica em Itabaiana, antes do Concílio Vaticano II, certamente estaria repleta
de uma literatura religiosa, a vida dos santos, a imitação de cristo, a bíblia,
os evangelhos; mas, por tentação de Satanás, Araponga pegou o primeiro livro na
estante errada, era um livro de Voltaire. E foi a sua perdição, encasquetou com
a filosofia, e não parou mais.
Até hoje me pergunto, o que
aquela literatura iluminista estava fazendo na biblioteca do padre? Suponho,
hoje, que sendo o padre muito ocupado com a salvação do rebanho, nunca tivera
tempo de examinar o acervo literário da sua Paróquia. O certo é que os livros
do padre empurraram Araponga para o ateísmo. Araponga leu Rousseau, Descarte,
Diderot, alguns discursos do incorruptível Maximilien François Marie Isidore de
Robespierre, leu os miseráveis aos 17 anos; percorreu a filosofia alemã, foi
aos russos, leu Tolstói e Dostoievsk; não esqueceu de Machado de Assis, e foi um
apaixonado por Lima Barreto. E o que ficou disso tudo? Quase nada, tudo muito
embaralhado. Araponga continua sapateiro, pobre, ateu, mas guardou um sonho:
ser imortal numa Academia de Letras, à semelhança da Académie française,
fundada por Richelieu em 1635.
Sempre foi um sonho improvável.
Contudo, o mundo gira. Araponga ficou sabendo que estão criando academias de
letras em todos os cantos e recantos desse velho Sergipe, soube também, que os
critérios para se tornar um escritor, um poeta, pintor, escultor, foram
relaxados. Ser artista agora ficou fácil. A arte e o talento nunca existiram. Ou
dito de outra forma, todos somos talentosos, o que dar no mesmo. A alta cultura
sempre foi uma tapeação das elites. Entre um clássico de Eça de Queiroz e um
livro de causos mal escrito, publicado às pressas, a diferença passa a ser uma
questão de gosto, tem quem goste de um e quem goste do outro. Tudo é relativo.
No início do ano, Araponga recebeu
a visita de um amigo, imortal das novas academias, que conhecendo o seu sonho,
não se acanhou em aconselha-lo: - companheiro, por que não publica aquele poema
em homenagem a revolução de 31 de março, que você declamou alguns versos na
escola de dona Branquinha? Araponga nem lembrava, mas retrucou: - quem sou eu,
pobre sapateiro, onde vou encontrar recursos para pagar a edição de um livro? A
não ser que eu poste em meu perfil no Facebook. Será se é válido para eu tentar
uma vaga numa Academia? O amigo disse que não sabia, e a conversa foi
encerrada.
Foram cutucar a onça, Araponga
despertou. Agora quer porque quer ser imortal. Postou o poema no Facebook, com
boa aceitação: 136 curtidas, 36 comentários (todos a favor) e 11
compartilhamentos. A poesia de Araponga ganhou o mundo. Já participou de um
sarau em Aracaju, e recebeu a promessa de um político, que vai arrumar um patrocínio
para que a poesia de Araponga vá ao papel. As coisas estão encaminhadas.
Araponga está percorrendo escolas, asilos, reuniões de Rotary, quermesse de
paróquias, e qualquer espaço onde ele possa declamar a sua arte. Contudo, ainda
não alcançou o principal objetivo: ocupar uma cadeira numa academia de letras.
E a missão está complicada. Já existem academias nos 75 municípios de Sergipe,
academias em alguns povoados, e ele até agora não foi lembrado. Ficar esperando
que um ou outro bata as botas, para ele disputar uma cadeira, não é um caminho
fácil. A fila é grande, muitos fazendeiros, políticos, gente graúda, todos
querendo. Ser imortal em Sergipe é uma glória muito desejada.
Foi diante da crise, da escassez
de vagas para a imortalidade, que Araponga encontrou uma saída genial, resolveu
criar uma Academia de Letras no Beco Novo, e por que não? Ele será de cara o
fundador e presidente; arrumar membros e patronos, com os novos critérios
também não será problemas. Não precisa de sede própria, vai se reunir na sede
do Rotary, no próprio Beco Novo. Os bodegueiros da rua, ao tomarem conhecimento
da iniciativa cultural, já fizeram uma vaquinha, e vão pagar as despesas com
edital, livro de ata, registro em cartório, e outros entraves burocráticos. O
sonho de Araponga vai se transformar em realidade.
Eu, mesmo já sendo imortal por
duas vezes, como natural do Beco Novo, até por uma questão de patriotismo, já
aceitei o convite. Betinho, Beijo, Bem-te-vi, Demir de Valdice, Rosa, Nego
Véio, Val e Regis de Euclides Barraca, as filhas de Bonito, Salomão, Pindoba,
Peba de Justino, Chumbrega, Cabo João Mole, Sampaio, Miguel Fagundes, Rosalvo
do Cabo Quirino, gente do Beco Novo é o que não falta, para ter o direito a
imortalidade. Araponga, ainda quer ser original, está propondo que a “Academia
Beco Novense de Letras, vá além, não seja apenas de letras, e seja a primeira,
uma “Academia Beco Novense de Letras, Números e Sinais de Pontuação. Vamos à
luta.