segunda-feira, 6 de julho de 2015

A DOR, O SOFRIMENTO E A SOLIDÃO.



Antonio Samarone de Santana.
Academia Sergipana de Medicina.

A semana passada visitei um amigo que padece de uma neuropatia progressiva. A doença evoluiu suprimindo os movimentos e os controles do sistema nervoso, tirando a autonomia até para beber água. Esta morte lenta está ocorrendo com o padecente em plena consciência, memória perfeita, raciocínio aguçado, só não consegue se expressar, a não ser pelo riso e pelo choro, pelos olhos expressivos e cheios de vida. O meu amigo tem uma neuropatia que ninguém sabe direito o diagnóstico, sempre imprecisos, sempre pode ser isso ou pode ser aquilo. Meu amigo sofre de uma doença negligenciada pela medicina.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define doença rara ou negligenciada como a que acomete até 65 pessoas a cada 100 mil. Em geral, é crônica, progressiva e degenerativa, com frequência levando à morte. A maior parte, 80%, tem origem genética. Nesse grupo estão incluídas anomalias congênitas ou de manifestação tardia, deficiência intelectual e erros inatos do metabolismo. As 20% demais são infecciosas, inflamatórias e autoimunes. Estima-se que no Brasil existem na ordem de 13 milhões de pessoas atingidas com essas doenças. Das cerca de 8 mil, mais de 90% não são tratáveis, a indústria farmacêutica não tem interesse em produzir esses medicamentos. O diagnóstico dessas doenças é difícil, geralmente ocorre em casos avançados e o tratamento consiste em cuidados paliativos.
Quem está cuidando do meu amigo, quem é o seu médico? São vários e nenhum, cada um cuida de um sintoma, de uma mazela, e prescreve um procedimento, uma terapia. Um cuida da fala, outro da depressão, outro da diabetes, outro da hipertensão, outro disso, outro daquilo. Mas quem cuida do alivio do sofrimento, do ser humano, da pessoa; quem avalia o que seria melhor para ele nesse momento? Claro, ninguém! Como ajuda-lo a suportar os últimos dias com dignidade? A medicina não cuida mais das pessoas, a medicina realiza procedimentos.
O meu amigo está tomando prolopa, para os tremores; esomeprazol, para a acidez do estômago; redoxon zinco, vitamina C mais zinco; metformina, para reduzir a glicemia; alopurinol, para reduzir o ácido úrico; striverdi, um brônquio dilatador; oximax, um corticoide; diovan, para hipertensão; clorid sertralina, outro para a pressão; spiriva, para depressão; macrodantina, para evitar infecções, talvez pelo uso frequente de sonda para urinar; DEA, que não sei para que serve, nem vou procurar saber; clorid propranolol, para ansiedade; e cialis, que vocês sabem para que serve. Sinceramente, são 14 medicamentos diários, e nenhum para a neuropatia progressiva. As 9 horas ele toma 12 medicamentos de uma só vez, a cuidadora me observou contente: - “ele engole com facilidade, não me dar trabalho”. Como um organismo, já debilitado, reage a isso?
Tenho uma profunda desconfiança que não estamos no caminho certo. Talvez o que a medicina por procedimentos tem a oferecer aos que precisam aliviar os seus sofrimentos nessas horas, que todos haveremos de passar, não seja um conforto, uma ajuda, uma boa companhia.


Tela: Einsam? (Solidão?), de Martin Kippenberger.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

A SAÚDE PÚBLICA EM SERGIPE (REPÚBLICA VELHA - PARTE QUATRO)


A Saúde Pública em Sergipe (Início da República – parte quatro)

Antonio Samarone de Santana.

Após décadas de conflitos políticos entre pebas e cabaús, entre 1911 a 1917, Sergipe será governado pelo General José Siqueira de Menezes, combatente de Canudos. O sucesso do General com o saneamento básico não se repetiu na estruturação da Inspetoria de Higiene, conforme mensagem dele próprio à Assembleia Legislativa, em 07 de setembro de 1912: “autorizado pela letra ‘f’ do art. 4o, da lei nº 602, de 23 de novembro do ano passado, a reformar a repartição de higiene, nada pude ainda fazer devido à nossa precária situação financeira".
No governo de Siqueira de Menezes será nomeado como Inspetor de Higiene, o Dr. Batista Itajay, que no final substituído pelo Dr. Octaviano Vieira de Melo, nomeado em 14 de maio de 1914, que permanecerá no cargo nos governos de Oliveira Valadão (1914/18) e Pereira Lobo (1918/22).
Manoel Baptista Itajay, nasceu em Lagarto, em 28 de junho de 1859. Formou-se em Salvador, em 18 de dezembro de 1886. Foi Deputado Estadual, Intendente de Itabaiana, Governador do Estado e Inspetor de Higiene, entre 1911 e 1914. Faleceu em 31 de janeiro de 1918, em Aracaju, com 59 anos, e está sepultado no Cemitério Santa Isabel, Aju/SE.
Podemos também situar a pequena importância da Repartição de Higiene, já no final do Governo Siqueira de Menezes, quando analisamos a proposta orçamentária do Estado para ano de 1914. De um total de despesas estimado em 2.153:961$755 réis, apenas 15:573$600 réis seriam consumidos com a saúde pública, ou seja, cerca de 0,72%, índice ainda menor de que os Governos anteriores.
No final do governo Siqueira de Menezes, o já Inspetor de Higiene Dr. Octaviano Vieira de Melo, em relatório publicado no jornal O Estado de Sergipe, em 15/08/1914, assim se manifestou sobre a Repartição de Higiene:  “Instalada, como ainda continua em prédio que não lhe é próprio, de todo arruinado, e fora em absoluto de todas as precisões higiênicas, precisa essa repartição passar por uma completa reforma, e ser aparelhada do material preciso para servir ao fim a que é destinada.
No Governo de Oliveira Valadão (1914/18) teremos duas mudanças importantes na Repartição de Higiene. Primeiro, a sua transformação, em 30 de dezembro de 1915, de Inspetoria em “Diretoria de Higiene e Saúde Pública”, através do decreto nº 618, e a devida aprovação de um novo regulamento. Segundo, a transferência, em 21 de maio de 1916, dos “Serviços de Assistência Pública” do âmbito da Diretoria de Segurança para a Diretoria de Higiene e Saúde Pública. 
O novo serviço de Assistência Pública teve sua regulamentação aprovada pelo decreto nº 645, de 11/01/1917. “Será desnecessário encarecer-vos, senhores Deputados, as excelências de um regular serviço de Assistência, que terá por fim prestar socorros médicos cirúrgicos às pessoas vítimas de acidentes, nos casos de envenenamento, asfixias ou estados mórbidos súbitos, bem como no enterramento de indigentes, no transporte de feridos e parturientes para o hospital ou para as suas residências”. Mensagem de Oliveira Valadão, à Assembleia Legislativa, em 07/09/1916.
Na verdade, o Serviço de Assistência Pública era um similar dos atuais Prontos Socorros, que, por razões até hoje incompreendidas, estava a cargo do Setor Policial, inclusive, era a única repartição que possuía uma ambulância para o transporte de doentes. De acordo com o regulamento, competia à Assistência Pública: a) prestar socorros médicos e cirúrgicos de urgência nas vias públicas, em todos os casos de ferimentos, asfixia, envenenamento ou estados mórbidos súbitos; b)    prestar socorros médicos e cirúrgicos aos doentes da população pobre, inclusive às parturientes e aos loucos, remetendo-os para os hospitais, maternidades ou asilos, quando não se possa tratar a domicilio; c) promover o enterramento dos indigentes depois da verificação do respectivo óbito. O Regulamento previa a cobrança dos serviços de quem pudesse pagá-los.
Na estruturação do novo serviço de assistência, o Governo criou em 09 de novembro de 1917, o “Posto de Assistência Pública”, que, embora subordinado à Diretoria de Higiene e Saúde Pública, possuía direção e pessoal próprios. Para o cargo de Diretor da Assistência foi nomeado o prestigiado médico Dr. Francisco de Barros Pimentel, que permanecerá no cargo até seu falecimento, quando então será substituído, em 30 de abril de 1922, pelo Dr. José Thomaz de Ávila Nabuco.
No seu primeiro ano de funcionamento, o Serviço de Assistência Pública adquiriu uma ambulância para o transporte dos doentes e um carro funerário (rabecão), ambos puxados a cavalos. O serviço de transporte de doentes da Assistência Pública passou a ter tanta importância nas décadas seguintes em Sergipe, que até bem pouco tempo, a população denominava ambulância de “assistência”, confundindo o veículo para o transporte com a repartição.
A Assistência Pública atendeu, de janeiro a agosto de 1918, os seguintes casos: 60 pessoas socorridas nas vias públicas, 166 pessoas transportadas para o hospital, 33 curativos, 59 receitas, 220 guias para enterramentos, 85 enterramentos 345 atestados de óbitos. Como se percebe pelo volume dos serviços prestado, foi fundamental a sua organização, e aponta no sentido da ampliação da competência do que se entendia por Saúde Pública.
No que se refere à aprovação do novo regulamento para a “Diretoria de Higiene e Saúde Pública”, não identificamos grandes mudanças em relação ao Regulamento de 1905. Ocorreu a já citada transformação de Inspetoria em Diretoria, extingue-se o Conselho Geral Sanitário, um retrocesso, e talvez a sua grande novidade: incorporou, em seu artigo 201, os trabalhadores no âmbito da competência de fiscalização da polícia sanitária. É um Regulamento um pouco mais extenso do que o anterior, com 256 artigos.
Ainda no governo Valadão, tivemos uma importante reforma no Lazareto Público (hospital de isolamento), que possuía capacidade de 60 leitos, passando a funcionar de forma permanente desde a epidemia de Peste Bubônica, de 1903. Encontramos certa preocupação com os doentes mentais, que continuavam trancafiados nas cadeias públicas: na mensagem à Assembleia de 1918, o Presidente solicitou recursos para a construção de um pavilhão para alienados no Hospital de Santa Isabel.
Em 17 de março de 1916, a Intendência (Prefeitura) de Aracaju inaugura o seu primeiro Posto de Assistência Médica, visando a atender os indigentes e os desprotegidos da sorte e realizar a distribuição de medicamentos. O Posto funcionava diariamente, das 10 às 12 horas, no prédio da própria Intendência. Esse serviço, com objetivos bem menos abrangentes do que o Posto de Assistência Pública do Estado, representou uma outra tendência na política de saúde, que só irá se consolidar muitos anos depois, a do poder público assumir a responsabilidade da assistência médica à população.

Foto: Oliveira Valadão.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

A SAÚDE PÚBLICA EM SERGIPE (INÍCIO DA REPÚBLICA - PARTE TRÊS)


A Saúde Pública em Sergipe (Início da República – parte três)

Antonio Samarone de Santana.

Durante o governo de Josino Menezes (1902 a 1905), foi aprovado um novo regulamento para a higiene pública. A lei nº 480, de 11 de novembro de 1904, alterou o regulamento existente. Em 03 de agosto de 1905 através do decreto nº 536, o Regulamento do Serviço de Higiene do Estado de Sergipe entrou em vigor, substituindo o de 1892. É um regulamento bem mais complexo, com 236 artigos, prevendo a ampliação da Inspetoria de Higiene. Além do Inspetor e dos Delegados de Higiene nos municípios, determinou a criação de um “Conselho Geral Sanitário”, órgão consultivo do Governo em matéria de saúde pública, o chamado controle social.
O Conselho Geral Sanitário era formado por três autoridades do poder público, o Inspetor de Higiene, o Médico de Saúde do Porto e o Intendente da Capital; e por três representantes da sociedade, um médico, um bacharel e um farmacêutico, nomeados pelo governo do Estado. Entre as atribuições do Conselho figurava a organização de um código sanitário.
O novo regulamento incorporou em seu texto as pretensões do Dr. Theodureto Nascimento, Inspetor de Higiene, de reformar a saúde pública em Sergipe. Na nova estrutura da Inspetoria estavam previstos a existência de uma seção de demografia sanitária, um instituto bacteriológico, um instituto vacinogênico, um laboratório de análise química e bromatologia, um serviço geral de desinfecção e um hospital de isolamento. Como se percebe, uma estrutura dentro da visão moderna da saúde pública daquele momento, que não consegue, contudo, sair do texto da lei.
O Regulamento normalizava o funcionamento dos hospitais e das casas de saúde particulares (inexistentes em Sergipe); o exercício da medicina, farmácia, arte dentária e obstetrícia; obrigava a vacinação (art. 76: “nenhum aluno será matriculado, nem funcionário tomará posse sem o atestado de vacina”); tornava obrigatório o atestado de óbito e a notificação de doenças. Nos itens referentes à fiscalização das fábricas, cuidava de proteger apenas os moradores vizinhos das mesmas, sem nenhuma citação de proteção aos trabalhadores.
Pelo Regulamento, o Inspetor de Higiene tinha poderes para autorizar a produção e comercialização de novos medicamentos. No jornal “O Estado de Sergipe” de 11 de março de 1909, encontramos um edital da Inspetoria autorizando o Dr. Pedro Garcia Moreno, farmacêutico de Laranjeiras, a comercializar o elixir de caroba e nogueira, o elixir antidiabético e um vinho intertropical, medicamentos de sua invenção e fabricação.
Durante os governos de Guilherme de Souza Campos (1906 a 1908) e do médico José Rodrigues da Costa Dória (1908 a 1911) ocupou a Inspetoria de Higiene o Dr. Francisco de Barros Pimentel Franco. No final do Governo Dória (1910), existiam apenas 15 Comissários Vacinadores nomeados para todo o Estado e 28 Delegados de Higiene, dentre os quais apenas sete médicos. Nesses dois Governos não identificamos nenhuma alteração importante, nem na estrutura nem no funcionamento, da repartição de higiene do estado. A opinião do Inspetor de Higiene confirma nosso ponto de vista: “Já é tempo de estabelecer-se neste Estado, nomeadamente nesta capital, um serviço regular de higiene moldado nos nossos recursos. ”
No governo de Guilherme de Campos os gastos com a saúde pública continuaram em patamares insignificantes. No ano de 1907, as despesas totais do estado estavam orçadas em 1.662:765$940 réis; e os gastos com a saúde pública importavam apenas 10:873$000 réis, isto é, cerca de 0,6% do orçamento. No mesmo ano, os gastos com a instrução pública atingiram 323:229$284, ou seja, cerca de 19% do orçamento.
Durante o governo Guilherme Campos (1906 a 1908) ocorreu um fato comprovador do atraso da medicina em Sergipe no período: o óbito em 13/12/1907, durante o trabalho de parto em palácio, de Dona Capitolina Alves de Melo, segunda esposa do desembargador Guilherme Campos, governador do Estado.  O parto foi acompanhado pelos doutores Costa Pinto e Moreira Magalhães, que chegaram à conclusão, de que somente o procedimento cirúrgico (Cesariana) salvaria a paciente. Mesmo tendo sido sobre “operação cesariana” a tese de doutoramento do doutor Costa Pinto, o mesmo nunca tinha tido a oportunidade de realizá-la. Em síntese, em Sergipe ainda não existiam condições para a realização de tal procedimento, nenhum médico estava preparado para realização de uma cesariana até a primeira década do século XX.
No final do Governo de Rodrigues Dória (1911), em seu último relatório, ele reforça nossa tese de que a estrutura sanitária do aparelho público, em Sergipe, não adquiriu condições para o enfrentamento mínimo das necessidades de saúde da população, até a última década da República Velha. “Não temos, nem tão cedo poderemos ter um serviço de higiene preventivo capaz de acautelar o Estado da invasão das moléstias epidêmicas, e de sua propagação. ”

Foto: Guilherme de Souza Campos.