sábado, 14 de junho de 2014

A medicina do Capital




A Medicina do Capital.
Antonio Samarone
Academia Sergipana de Medicina

Em outros tempos, os médicos cuidavam dos doentes, sua principal missão era aliviar o sofrimento humano. Estabelecia com a sua clientela uma relação fraterna e de confiança, chamada pretensiosamente de “colóquio singular”. A recompensa não era pagamento, remuneração, salário, vencimento, nada que parecesse comércio, poeticamente, os médicos recebiam honorários, aquilo que honra a quem recebe. Era comum o “Deus lhe pague”, o “abaixo de Deus, o senhor”, e todo o médico tinha um horário em sua agenda para a filantropia. Com freqüência, os pacientes demonstravam sua gratidão com mimos: - “doutor, engordei esse capão para o senhor”.
A profissão médica era essencialmente uma atividade liberal. O segredo, a livre escolha, a confiança e a autonomia do médico eram intocáveis. Os remédios eram dosados individualmente e a clínica soberana. O foco do cuidado era o ser humano, em sua individualidade. Após a segunda guerra, com os avanços do conhecimento, o trabalho médico cresceu em complexidade, surgiram às especializações médicas, novas tecnologias e a indústria farmacêutica.  A tecnologia médica foi concentrada nos hospitais.
Uma mudança positiva: a intervenção médica passou a ter eficácia, em especial, contra as doenças infecciosas. Deixou de ser apenas psicoterapia. O conhecimento permitiu grande resolutividade nos atendimentos de urgência. A expansão da cobertura passou a ser uma exigência democrática. Cresceu o número de escolas médicas, leitos hospitalares, clínicas, redes públicas (PIASS), INAMPS, SUDS e, finalmente, a assistência médica tornou-se universal (SUS).  
Nesse momento estabeleceu-se uma polêmica. Com a contratação pelos governos, órgãos de previdência, empresas médicas, etc., os médicos passaram a condição de empregados, a compor o exército de trabalhadores assalariados. Um grupo entendeu que isso era um avanço, e passou a organizar os sindicatos, e a se preparar para as disputas sindicais, greves, mobilizações, etc. Outro grupo, sediado na Associação Médica Brasileira (AMB), entendia que essa mudança seria a derrocada, os médicos deveriam continuar liberais, que essa relação patrão/empregado acabaria com a livre escolha, com a autonomia, e seria nefasta para a relação médico paciente. Os médicos sempre resistiram à condição de assalariados, foram empurrados pela força das relações econômicas.
O crescimento dos serviços médicos, indústria farmacêutica, insumos, novos equipamentos, os crescentes investimentos públicos com saúde, transformaram a atenção a saúde num poderoso ramo dos negócios capitalistas. Além da consolidação do complexo médico industrial, importante componente do PIB, o Capital financeiro se encarregou de monopolizar as operadoras dos planos de saúde. A saúde, como qualquer outro campo de atividade, submete-se as regras do mercado, e o cuidado médico se transforma em mercadoria.
A medicalização da vida social se impõe. O trabalho médico foi fragmentado em 4.600 intervenções distintas, realizadas sem coordenação, com o consumo orientado pela oferta. O cuidado médico foi repartido em “procedimentos”, denominação que a atividade médica transformada em mercadoria, passou a receber em seu consumo pelos pacientes. Os médicos vendem procedimentos. Em parte, os procedimentos são úteis, possuem “valor de uso”; mas o que determina o seu consumo são os “valores de troca”, como qualquer mercadoria. A indicação, a freqüência a oportunidade da realização dos procedimentos saíram do controle do médico, são condicionados pelo tipo de plano de saúde, pelo poder aquisitivo do paciente, pela cobertura dos serviços públicos, pela necessidade de amortização do equipamento, etc. etc. Para tranqüilizar a redução de importância do trabalho médico, a ciência elaborou protocolos, e o consumo passou a ser legitimado pela ciência...
A maioria desses procedimentos são exames, implantes e intervenções realizados por equipamentos (trabalho morto), os mais valorizados, de maior custo. A consulta, forma dominante de trabalho na fase dos cuidados, passou a ser secundária, mal paga, muitas vezes apenas uma etapa para viabilização do consumo de outros procedimentos. Como acontece em outros ramos da atividade econômica, o trabalho foi expropriado do trabalhador, cabendo-lhe uma pequena tarefa na linha de montagem da vida.
O medico que insistir em cuidar de seus pacientes de forma holística, humana, integral, voltada para o seu bem estar e para o alivio do seu sofrimento, enfrentará a barreira inexpugnável da medicina do Capital. A falência do Programa de Saúde da Família deve-se, entre outras mazelas, a invasão desta lógica mercantil no trabalho médico, inclusive no SUS. No Brasil, a medicina foi subjugada pela regras de mercado, e talvez estejam aí a sua grande inadequação as necessidades de saúde da população.
O médico transformou-se num executor de tarefas de um negócio cada vez mais lucrativo, mesmo os assalariados dos serviços públicos padecem dessa servidão. Restam-lhes transformar-se num pequeno empresário, adestrar-se na realização de um ou dois procedimentos, integrar-se no mercado, e contentar-se com as migalhas que sobrarem do bolo. Não é possível entender a progressiva perda de prestígio da categoria médica, a desconfiança da opinião pública e as hostilidades do governo, se não aprofundarmos na discussão do trabalho médico no atual estágio da acumulação capitalista.