quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A Urgência Médica em Sergipe - 1930






Serviços de Urgência Médica em Sergipe – 1930.

 “O serviço de Assistência Pública nesta Capital está anexo a Enfermaria da Força Pública, de maneira que o médico encarregado da Assistência trabalha sob a imediata dependência do médico chefe da Enfermaria. Este substitui aquele na prestação de socorros que são exigidos com urgência. Igualmente a Enfermaria se utiliza dos serviços do médico encarregado da Assistência todas as vezes que este auxílio se torna preciso. Os demais funcionários servem também na Assistência e na Enfermaria.”
“Eis como o serviço de Pronto Socorro vai sendo desempenhado: no ano que se trata, a Assistência transportou e socorreu 452 indivíduos, não se limitando a isso o trabalho, porque os enfermos, na falta de Hospital de Pronto Socorro, permanecem em tratamento na Enfermaria da Força o tempo necessário, e depois são conduzidos para os hospitais Santa Isabel e Cirurgia, ou para as respectivas residências.”
“A Assistência dispõe de uma ambulância automóvel, em tempo adaptada, e que, com os reparos que sofreu o ano passado, se vai prestando bem aos fins a que se destina. A direção do serviço procura sempre poupá-la, ordenando que, para as ruas mal calçadas, ou sem calçamento, se utilize a ambulância de tração animal. Igualmente se proíbe que nela se transporte loucos ou pessoas portadoras de moléstias contagiosas. Existe outro carro de tração animal, para o enterramento de indigentes, serviço também a cargo da Assistência. O número desses enterramentos foi de 107. Precisam ser melhorados os serviços de transporte de que dispõe a Assistência.”
“A Farmácia da Enfermaria da Força fornece todo o material para os curativos e tratamentos feitos pela Assistência, sendo os maiores gastos os relativos ao algodão, gazes, ataduras, esparadrapos, soluções anti-sépticas, álcool, água oxigenada, ampolas de urgência. Com a autoclave da sala de cirurgia, para esterilização, que vem sendo instalado na Enfermaria, será muito reduzida à despesa com algodão, gazes, ataduras e esparadrapos.”    
Fonte: Transcrito do Relatório do Presidente do Estado, Manoel Dantas, em setembro de 1930.

sábado, 22 de novembro de 2014

Nosso Corpo, Nossas Regras...


“Nosso corpo, nossas regras...”
 Antonio Samarone
Academia Sergipana de Medicina
As mulheres querem seus corpos de volta. Foi o que assisti ontem na OAB, numa palestra da Dra. Melania Amorim. Numa convincente e culta exposição, a médica, feminista, pesquisadora e ativista pela humanização do parto destrinchou os atuais procedimentos realizados pelos obstetras no ato de partejar, apontando equívocos, humilhações e maus tratos, lesivos a dignidade das mulheres. Uma verdadeira tourada obstétrica.
Segundo a pesquisadora, o parto deveria ser um momento divino para as mulheres, um evento natural cercado de simbologias e experiências emocionais. O primeiro encontro entre mãe e filho necessita de um cenário cercado de atenção, carinho e liberdade. As mulheres não podem abrir mão de comandar esse momento. A medicalização do parto, passando esse comando para os médicos, que determinam os tempos, modos e seqüências, levando aos extremos de obrigá-las a esquisita posição supina com as pernas levantadas, presas por suportes, posição de “frango assado”, com o objetivo de facilitar suas intervenções, precisam ser revistas. As mulheres devem parir na posição que acharem mais confortáveis e que se sentirem melhor. As posições onde o próprio feto ajude pela força gravitacional a sua expulsão parecem mais naturais.
No Brasil, os abusos continuam no “convencimento” (imposição?) da preferência pelo parto cirúrgico em detrimento do parto normal, com alegações e justificavas cientificamente inaceitável.  Atualmente, 85% dos partos realizados pelos planos de saúde e 37% dos realizados pelo SUS são cirúrgicos (cesáreas), com consequências tanto para a mãe como para o recém nascidos, mas de ampla conveniência financeira para os médicos, que assim podem racionalizar o uso do seu tempo e arrumar melhor sua jornada de trabalho.
Até o final do século XIX as cesáreas eram realizadas quando ocorria a morte materna após o sexto mês de gestação, visando salvar o feto. Era proibido o sepultamento sem a retirada do feto, pelo menos para batizá-lo. As cesáreas em vivas antes das descobertas da anestesia e da assepsia eram a certeza da morte por choque, hemorragias e peritonites. A história do parto é uma das mais dolorosas e traumatizantes das histórias universais, entregues a parteiras, cirurgiões e cirurgiões barbeiros, pois os médicos consideravam um ato indigno. Para os menos informados, cirurgiões e parteiros (obstetras) eram profissões, até o final do século XIX, distintas da profissão médica. A condenação bíblica pelo pecado original - “parirás teus filhos com dor e sofrimentos” - continua, com nuanças, sendo executada até hoje.
O próprio deus da medicina, Asclépio para os gregos ou Esculápio para os romanos, nasceu de uma cesariana. A ninfa Coronis, mãe de Asclépio, é condenada a morte por ter traído Apolo, antes da execução, o filho é retirada do seu útero. O imperador Júlio César promulgou uma lei determinando que, diante do óbito da mãe durante o trabalho de parto, o médico estaria autorizado a abrir o ventre e salvar a criança. Por conta dessa determinação do imperador, a cirurgia recebeu o seu nome.
Quando a opção é pelo parto normal, segundo a pesquisadora, a violência contra a mulher continua. A parturiente é posta num leito, na posição descrita acima, seus pelos sãos raspados, um soro com ocitocina é aplicado, para aumentar as contrações e diminuir o tempo do trabalho de parto. A mulher é obrigada a fazer força, todas as vezes que o médico emite o comando, e se não atender ou começar a chorar alto ou gritar de dor, pode ser admoestada com piadinhas e gracejos. “Na hora de fazer, não reclamou”, “se cale se não eu paro meu serviço”, ou outras infâmias dessa natureza.
Aqui entra a episiotomia, um corte lateral que os médicos realizam na vagina, para facilitar a saída do feto, e que a Dra. Melania, considera uma agressão estúpida, sem evidências científicas, realizado sem o consentimento das mulheres, e que em muitas delas tem o potencial agressivo do estupro. Este corte cumpre apenas o primitivo papel dos ritos de passagem, segundo ela. Consultando os colegas obstetras, eles entendem que a pesquisadora é uma feminista radical que não frequenta as “salas de partos”, e que desconhece os benefícios para as mulheres do parto hospitalar sob a tutela dos médicos.
Os defensores do atual modelo apresentam em sua defesa a incrível redução da mortalidade materna que o parto hospitalar medicalizado proporcionou. Os que defendem a autonomia das mulheres e a imediata humanização do parto usam em seu favor algumas evidências históricas. Até o final do século XIX a principal causa da elevada mortalidade materna era a febre puerperal, descoberta depois que era causada pelas mãos sujas dos médicos; e a sua redução só foi possível após o esforço dos mesmos em aceitarem lavar as mãos com água e sabão antes de cada procedimento.
Citei apenas alguns procedimentos violentos da atual assistência ao parto, comentados pela Dra. Melania. A sociedade brasileira, através de uma vanguarda de mulheres, está colocando na pauta dos direitos humanos a questão da violência obstétrica. O fato da OAB patrocinar o evento, da palestrante ser aplaudida de pé pela plateia presente demonstra que elas não estão sós, que a questão precisa ser enfrentada, que os obstetras precisam submeter-se publicamente a esse debate e apresentarem suas razões, que os gestores da saúde precisam abrir as portas de suas maternidades. Duas questões são incontestáveis: as mulheres têm o direito à autonomia sobre os seus corpos e parir é um evento natural, não é doença...


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Os médicos no Brasil Colônia.

Os médicos no Brasil Colônia.

Antonio Samarone
Academia Sergipana de Medicina.

Entender a medicina praticada no Brasil Colônia nos remete para a compreensão da medicina em Portugal. Como Portugal formava seus Físicos (médicos)? O ensino da medicina não se estabeleceu nas comunidades monásticas, foram para as universidades nascentes. Salerno, ao sul da Itália, foi uma das primeiras. Montepellier, Paris, Bolonha, Salamanca, Valladolid, entre outras.
Em Portugal, o ensino da medicina começou no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, fundado em 1130, por D. Afonso Henrique, o mesmo príncipe que declarou a autonomia do Condado Portucalense (1128). A ciência hipocrática era apanágio dos religiosos, que a ensinavam e a praticavam.
A universidade portuguesa foi fundada em 1290, por D. Dinis, e constava das seguintes matérias: Cânones, Leis, Gramática, Lógica e Medicina.
A universidade no inicio ficava em Lisboa, depois Coimbra, depois voltava para Lisboa e, finalmente, em 1537, estabeleceu sua sede em Coimbra.
Da fundação até 1493, a medicina constava de uma cadeira, dominada pelos religiosos, tratava-se da leitura das obras de Hipócrates. Daí para frente, até 1540, foram dois lentes, (por porque liam); um de “prima”, pela manhã, lia as obras de Galeno; e outro de “véspera”, pela tarde, lia as obras de Hipócrates. Em 1940, foi criada a cátedra da “tertia” hora, a partir das 10 da manhã, onde eram lidos os autores árabes (Rhazes, Averrois e Avicena). O trabalho manual era considerado indigno, coisa de cirurgiões.
Depois de aprovado em gramática e em lógica, o aluno poderia ser matriculado no curso de medicina. Com três anos, o aluno era graduado como Bacharel em Artes e medicina; com mais um ano, obteria o título de licenciado; e após cinco anos, após a defesa de “conclusões magnas”, receberia o grau de doutor.
Somente em 1556, foram criadas outras catedrilhas, entre as quais a de anatomia, para ler “De uso Partium”, obra de Galeno; e uma cadeira de cirurgia teórica. A prática hospitalar e o ensino da clínica somente tiveram inicio em 1562, no Hospital Real de Coimbra. Este quadro só mudou com a Reforma de Pombal, em 1772. Enquanto o resto da Europa ensaiava mudanças, com o advento das descobertas da medicina, Portugal permanecia na leitura dos antiquados textos medievais.
Com a reforma de Pombal, o aspirante a carreira médica deveria saber falar latim, ter conhecimento do grego, da filosofia moral e racional, e manejar inglês ou francês. O curso passou a ser composto por cinco cadeiras: matéria médica e farmácia no primeiro ano; prática das operações e obstetrícia no segundo; teoria médica com prática no terceiro, onde se ia para o hospital; aforismos de Hipócrates e prática hospitalar no quarto; prática de medicina e de cirurgia, no quinto. Com cinco anos o aluno recebia o grau de bacharel em medicina e cirurgia, com mais um ano e a defesa da tese, se obtinha o título de licenciado e de doutor. Em 1783, com a criação da cadeira terapêutica cirúrgica, a cirurgia elevou-se ao nível da medicina.
Nos séculos XVII e XVIII, o ensino da cirurgia se fazia separadamente, e constava do aprendizado da trepanação, operação da hérnia, cauterização de tumores, lancetamento de abscessos e tumorações, extração de cálculos vesicais e operação de cataratas. Após o estágio, o aluno recebia o título de cirurgião aprovado.
Fonte de referência: História Geral da Medicina Brasileira, Lycurgo Santos Filho, Vol. I.

terça-feira, 1 de julho de 2014

A assombrosa história da medicina, o caso das lobotomias.







A assombrosa história da medicina, o caso das lobotomias. 



Antonio Samarone
Academia Sergipana de Medicina.

Os conhecimentos da medicina sobre o cérebro humano são recentes. Somente no final do século XIX, Santiago Ramón y Cajal, médico espanhol, Nobel em 1906, descobre que a unidade funcional do Sistema nervoso é o neurônio. Não é por acaso, que até hoje, o coração ainda simboliza as emoções. Em boa parte do século XX, a medicina não dispunha de nenhum recurso para enfrentar as doenças mentais.
Havia suspeitas que as funções nervosas superiores, linguagem, visão, emoções, etc., se localizam nos lobos do cérebro, porém sem comprovação científica. Somente em 1865, Pierre Paul Broca comprovou que o lobo frontal esquerdo era a sede da fala, e ficou conhecido como a “Área de Broca”. Essa descoberta deu fôlego para o surgimento da frenologia, tão apreciada pela medicina legal e pela criminologia no começo do século XX.
Com as descobertas da anestesia, assepsia e da localização das funções mentais em áreas específicas do cérebro, final do século XIX, o caminho estava aberto para a resolução das doenças do sistema nervoso através da cirurgia. Primeiro as neurocirurgias, retirada de tumores, abscessos, coágulos se tornaram frequentes; e logo em seguida, a introdução das cirurgias para as doenças mentais, as psicocirurgias. A ideia era simples: se os doentes estão ouvindo vozes, basta extrair o centro da fala que o problema está resolvido.
Reconhecemos que a tentativa de resolver as doenças mentais cirurgicamente é antiga. “Rogério de Salerno, cirurgião do século XII, recomendava que para mania e melancolia o escalpe do topo da cabeça fosse incisado em cruz e o crânio perfurado para deixar escapar a matéria”, (Antunes, p. 176). Porém, nada parecido com a lobotomia, método instituído a partir de 1935, pelo médico português Antônio Caetano de Abreu Freire Egas Munir, que consistia na retirada do lobo pré-frontal do cérebro, como forma de tratamento de várias doenças mentais, entre elas a melancolia e a esquizofrenia. A lobotomia era a retirada da parte doente do cérebro, uma verdadeira cirurgia da alma.
A lobotomia como forma de tratamento das doenças mentais se expandiu velozmente pelo mundo. Segundo Antunes, em sua biografia sobre Egas Muniz, entre 1942 e 1954, foram operados na Inglaterra e no País de Gales 11 mil doentes mentais e nos Estados Unidos, teriam sido praticadas 18.600 intervenções. O uso da lobotomia reduziu em 25% a população psiquiátrica nos hospitais. A primeira lobotomia no Brasil foi realizada pelo Dr. Matos Pimenta, em 1936, no hospital do Junqueri em São Paulo. A Colônia Juliano Moreira, inaugurada em 1952 no Rio de janeiro, possuía uma ala de psicocirurgias denominada Egas Muniz.
Em 1949, o Dr. Egas Muniz é agraciado com Nobel de medicina pela descoberta da lobotomia; premio que ele aguardou por sua outra descoberta para a medicina, a angiografia. Egas Muniz faleceu em 1955, coberto de glórias como grande benemérito da medicina. A lobotomia foi usada largamente no mundo até 1954, com a descoberta da clorpromazina, o primeiro medicamento usado com algum sucesso no tratamento das doenças mentais.
A partir desse momento, a visão sobre o papel da lobotomia na medicina inverteu-se radicalmente. As denuncias de que era um método de controle para prisioneiros políticos e jovens delinquentes se espalharam, em especial, nos países totalitários, que era uma forma de eugenia social, de transformação de seres humanos em zumbis descerebrados, etc. A lobotomia passou a ser usada para tratar de uma série de males, incluindo a ninfomania, o socialismo e a sede insaciável por liberdade. Várias propostas para revogação do Nobel para Egas Muniz já foram tentadas, e famílias já acionaram a justiça para reparar os danos a seus familiares que receberam o polêmico procedimento.
A lobotomia caiu na clandestinidade por vários anos, passou a ser considerada uma terapia aberrante e cruel, praticada por médicos marginais.  Atualmente as psicocirurgias ressurgiu com acentuado vigor, subsidiada pelos conhecimentos das neurociências, com mais recursos, mais precisão, com amplo conhecimento dos pacientes, e com retiradas de áreas bem mais restritas do cérebro. “A profissão médica não deve desculpas pela prática da lobotomia”, dizem os novos adeptos das psicocirurgias, deve celebrar essa prática como um começo ousado de uma evolução que continua... A cirurgia funcional do Sistema Nervoso está apenas começando. 
A mais comovente lição deste belo trabalho de João Lobo Antunes, “Egas Muniz – uma biografia”, publicado pela Civilização brasileira, é que precisamos ficar alertas para a rapidez como a medicina modifica suas visões e suas condutas nos enfretamentos dos problemas de saúde.
A questão das doenças mentais continua polêmica. As visões variam dos que acreditam na inexistência das mesmas, tudo não passando de comportamentos alternativos, alguns com reconhecido sofrimento; a uma visão inversa, onde todo comportamento fora da média é um distúrbio mental, portanto, passível de medicalização. As visões simplificadas das neurociências buscam nas alterações físico/química do cérebro, a base mecânica para as perturbações mentais. As condutas terapêuticas variam das simpatias, terapias grupais, florais, psicoterapias, intervenções medicamentosas e psicocirurgias; ou ecleticamente, tudo junto e misturado. Quem quiser que acredite nas descobertas “científicas” da medicina sem uma visão critica. Eu ando desconfiado com tudo...

sábado, 14 de junho de 2014

A medicina do Capital




A Medicina do Capital.
Antonio Samarone
Academia Sergipana de Medicina

Em outros tempos, os médicos cuidavam dos doentes, sua principal missão era aliviar o sofrimento humano. Estabelecia com a sua clientela uma relação fraterna e de confiança, chamada pretensiosamente de “colóquio singular”. A recompensa não era pagamento, remuneração, salário, vencimento, nada que parecesse comércio, poeticamente, os médicos recebiam honorários, aquilo que honra a quem recebe. Era comum o “Deus lhe pague”, o “abaixo de Deus, o senhor”, e todo o médico tinha um horário em sua agenda para a filantropia. Com freqüência, os pacientes demonstravam sua gratidão com mimos: - “doutor, engordei esse capão para o senhor”.
A profissão médica era essencialmente uma atividade liberal. O segredo, a livre escolha, a confiança e a autonomia do médico eram intocáveis. Os remédios eram dosados individualmente e a clínica soberana. O foco do cuidado era o ser humano, em sua individualidade. Após a segunda guerra, com os avanços do conhecimento, o trabalho médico cresceu em complexidade, surgiram às especializações médicas, novas tecnologias e a indústria farmacêutica.  A tecnologia médica foi concentrada nos hospitais.
Uma mudança positiva: a intervenção médica passou a ter eficácia, em especial, contra as doenças infecciosas. Deixou de ser apenas psicoterapia. O conhecimento permitiu grande resolutividade nos atendimentos de urgência. A expansão da cobertura passou a ser uma exigência democrática. Cresceu o número de escolas médicas, leitos hospitalares, clínicas, redes públicas (PIASS), INAMPS, SUDS e, finalmente, a assistência médica tornou-se universal (SUS).  
Nesse momento estabeleceu-se uma polêmica. Com a contratação pelos governos, órgãos de previdência, empresas médicas, etc., os médicos passaram a condição de empregados, a compor o exército de trabalhadores assalariados. Um grupo entendeu que isso era um avanço, e passou a organizar os sindicatos, e a se preparar para as disputas sindicais, greves, mobilizações, etc. Outro grupo, sediado na Associação Médica Brasileira (AMB), entendia que essa mudança seria a derrocada, os médicos deveriam continuar liberais, que essa relação patrão/empregado acabaria com a livre escolha, com a autonomia, e seria nefasta para a relação médico paciente. Os médicos sempre resistiram à condição de assalariados, foram empurrados pela força das relações econômicas.
O crescimento dos serviços médicos, indústria farmacêutica, insumos, novos equipamentos, os crescentes investimentos públicos com saúde, transformaram a atenção a saúde num poderoso ramo dos negócios capitalistas. Além da consolidação do complexo médico industrial, importante componente do PIB, o Capital financeiro se encarregou de monopolizar as operadoras dos planos de saúde. A saúde, como qualquer outro campo de atividade, submete-se as regras do mercado, e o cuidado médico se transforma em mercadoria.
A medicalização da vida social se impõe. O trabalho médico foi fragmentado em 4.600 intervenções distintas, realizadas sem coordenação, com o consumo orientado pela oferta. O cuidado médico foi repartido em “procedimentos”, denominação que a atividade médica transformada em mercadoria, passou a receber em seu consumo pelos pacientes. Os médicos vendem procedimentos. Em parte, os procedimentos são úteis, possuem “valor de uso”; mas o que determina o seu consumo são os “valores de troca”, como qualquer mercadoria. A indicação, a freqüência a oportunidade da realização dos procedimentos saíram do controle do médico, são condicionados pelo tipo de plano de saúde, pelo poder aquisitivo do paciente, pela cobertura dos serviços públicos, pela necessidade de amortização do equipamento, etc. etc. Para tranqüilizar a redução de importância do trabalho médico, a ciência elaborou protocolos, e o consumo passou a ser legitimado pela ciência...
A maioria desses procedimentos são exames, implantes e intervenções realizados por equipamentos (trabalho morto), os mais valorizados, de maior custo. A consulta, forma dominante de trabalho na fase dos cuidados, passou a ser secundária, mal paga, muitas vezes apenas uma etapa para viabilização do consumo de outros procedimentos. Como acontece em outros ramos da atividade econômica, o trabalho foi expropriado do trabalhador, cabendo-lhe uma pequena tarefa na linha de montagem da vida.
O medico que insistir em cuidar de seus pacientes de forma holística, humana, integral, voltada para o seu bem estar e para o alivio do seu sofrimento, enfrentará a barreira inexpugnável da medicina do Capital. A falência do Programa de Saúde da Família deve-se, entre outras mazelas, a invasão desta lógica mercantil no trabalho médico, inclusive no SUS. No Brasil, a medicina foi subjugada pela regras de mercado, e talvez estejam aí a sua grande inadequação as necessidades de saúde da população.
O médico transformou-se num executor de tarefas de um negócio cada vez mais lucrativo, mesmo os assalariados dos serviços públicos padecem dessa servidão. Restam-lhes transformar-se num pequeno empresário, adestrar-se na realização de um ou dois procedimentos, integrar-se no mercado, e contentar-se com as migalhas que sobrarem do bolo. Não é possível entender a progressiva perda de prestígio da categoria médica, a desconfiança da opinião pública e as hostilidades do governo, se não aprofundarmos na discussão do trabalho médico no atual estágio da acumulação capitalista.