segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A GRIPE ESPANHOLA EM SERGIPE (1918)


Antonio Samarone de Santana.
Academia Sergipana de Medicina.

A gripe ou influenza é uma doença infecciosa, geralmente benigna, provocada por vírus e transmitida por contato direto. Algumas vezes, em decorrência de mutações genéticas do vírus, pode transformar-se em doença fatal. A causa da gripe foi inicialmente atribuída a um bacilo, isolado em 1891, pelo médico alemão Richard Pfeiffer. Somente em 1933 o vírus da doença é identificado por cientistas britânicos, abrindo a possibilidade de elaboração de vacinas contra a gripe.
Em 1918, uma epidemia de gripe originada na Espanha se generalizou pela Europa, então marcada pelos efeitos da I Guerra Mundial, e de lá se propagou para a Ásia e o continente americano, tornando-se uma pandemia. As estimativas apontaram cerca de vinte milhões de mortos entre os seiscentos milhões de infectados em todo o mundo.
A gripe espanhola chegou ao Brasil a bordo do navio S. S. Demerara, que em 21 de setembro aportou no Recife proveniente do porto de Dacar, na África, a epidemia se espalhou, em poucas semanas, pelas principais cidades do país.
Em Sergipe, a gripe espanhola chegou em 20 de outubro de 1918, quando seis pessoas contaminadas pelo referido mal desembarcam do “Vapor Itapacy”. Logo que a informação chegou ao conhecimento do Diretor de Higiene, essas pessoas foram removidas para o Lazareto Público, mas já era tarde. Em 04 de novembro, o mal já havia se espalhado pelo Estado, sendo a primeira vítima fatal Georgina de Jesus, negra de 25 anos e residente à Rua de Campos, em Aracaju[i].
O Governo tomou todas as providências que a sua estrutura permitia: criou um “Serviço de Combate à Gripe Espanhola” e entregou a coordenação ao Dr. Eronides de Carvalho. Convocou, para fazer parte do serviço, todo o pessoal médico ligado aos serviços públicos, ou seja, os Drs. Octaviano Melo, Diretor de Higiene; Pimentel Franco, Diretor da Assistência Pública; Carlos Menezes, Diretor do Gabinete de Identificação e Estatística e Médico legista da Policia; Álvaro Telles de Menezes, médico da Prefeitura e Alexandre Freire, Diretor do grupo Escolar “General Valladão”. Além do seu pessoal, comissionou os Drs. José Francisco da Silva Melo, médico, e Durval Madureira Freire, João Alfredo de Marsillac Motta, José Alves Tavares e Pedro Garcia Moreno, farmacêuticos, e Francisco Accioly Sobral, cirurgião-dentista[ii].
O Presidente recorreu à Assembléia Legislativa pedindo liberação de recursos para enfrentar o problema. Em 08 de novembro, a lei n.º 765 abriu créditos especiais de 10 contos de réis para o combate à epidemia e, poucos dias após, em 16 de novembro, a gravidade e velocidade de expansão da doença obrigou a aprovação de uma nova lei, a de n.º 766, abrindo créditos de cem contos de réis para o mesmo fim. A previsão orçamentária do Estado para o ano de 1918, destinava à rubrica Higiene e Saúde Pública pouco mais de 33 contos de réis[iii].
Diante das deficiências do Poder Público para enfrentar a epidemia, a sociedade reagiu de forma inusitada: pela primeira vez, em Sergipe, a população se mobilizou para enfrentar um problema de saúde pública. Entidades, empresas, clero, instituições beneficentes movimentaram recursos e pessoas para enfrentar a epidemia. A loja Maçônica “Cotinguiba” assumiu a responsabilidade pela assistência da área que ia da Rua Barão de Maruim até a localidade denominada “carro quebrado”. A Maçonaria entregou a coordenação dos trabalhos ao professor José de Alencar Cardoso, e contratou o Dr. Berílio Leite para realizar os trabalhos clínicos. 885 doentes foram atendidos pela loja maçônica, com 19 óbitos.
Importante também foi à participação da Associação Comercial, responsável pelas ruas Divina Pastora, Bonfim, Socorro, Vitória, Desaperta, Topo e Ignácio de Loyola. A entidade comercial contratou os serviços clínicos do Dr. Álvaro Teles de Menezes e atendeu a um total de 795 doentes. O Posto de Santo Antônio atendeu 1.200 doentes e ficou sob a responsabilidade do padre Abílio Mendes, de Garcia Rosa e Silvério Fontes e os serviços clínicos entregues à farmacêutica Cesartina Regis. Participaram também no combate à epidemia a Cruz Vermelha (320 doentes), Hospital Santa Isabel (50 doentes), quartel do 41.º Batalhão de Caçadores (352 doentes), fábrica Confiança (382 doentes), fábrica Sergipe Industrial (763 doentes), Escola de Aprendizes de Marinheiros (72 doentes), quartel de polícia (77 doentes), cadeia pública (83 doentes), Compagnie des Chemins de Fer (123 doentes) e Lazareto Público (32 doentes).
O atendimento consistia, basicamente, na distribuição de medicamentos entre a população indigente, distribuição de alimentos ou dinheiro, desinfecção das casas onde ocorriam óbitos e na remoção dos cadáveres. O tratamento usado para enfrentar a gripe era um purgativo, óleo de rícino ou água laxativa vienense, um antitérmico, cápsula de aspirina, pyramidon ou antipyrina, e um xarope de alcatrão. Para desinfetar as casas usava-se creolina, alcatrão e gás sulfuroso, como também se queimavam alcatrão nas ruas e praças.
“Em noite de 03 de dezembro de 1918, ordenei que se queimasse alcatrão nas praças Tobias Barreto e na do mercado, bem como nas ruas de Estância, Laranjeiras, São Cristóvão, Tôpo, São José, Estrada Nova, Alecrim, Geru, Divina Pastora, Bonfim, Victória e São João.”[iv]
Como demonstração da importância do atendimento prestado pela sociedade civil em Aracaju durante a epidemia, a Diretoria de Higiene, ou seja, o Poder Público, atendeu 2.790 doentes, enquanto as organizações não governamentais atenderam 4.488, ou seja, quase o dobro do Estado.
Durante os três meses que a pandemia assolou Sergipe. O número de casos registrados e o número de óbitos da epidemia de gripe espanhola, segundo o relatório de 1919, do Presidente Pereira Lobo, foram de 25.910 casos, com 997 óbitos em todo o Estado; sendo que somente em Aracaju aconteceram 7.974 casos, com 229 óbitos.
Esses dados foram contestados, inclusive pelo próprio chefe do combate, Dr. Eronides de Carvalho, que afirmava em seu relatório que o número de casos foi bem superior, devido a duas razões principais: os serviços de registros não eram merecedores de fé e só eram registrados os casos que se verificavam em indigentes que precisaram do socorro público.
O que ficou demonstrado é que Sergipe, pelo menos até o ano de 1919, ainda não tinha como enfrentar as epidemias. As ações eram improvisadas. Nesse caso da gripe espanhola toda rede escolar foi fechada, como várias outras instituições coletivas. O que ficava cada vez mais claro era a necessidade de uma ampla reforma dos serviços de higiene e saúde pública.



[i] Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa, em 07 de setembro de 1919, pelo Presidente do Estado, Coronel Dr. José Joaquim Pereira Lobo.
[ii] Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa, em 07 de setembro de 1919, pelo Presidente do Estado, Coronel Dr. José Joaquim Pereira Lobo.
[iii] Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa, em 07 de setembro de 1919, pelo Presidente do Estado, Coronel Dr. José Joaquim Pereira Lobo.
[iv] Relatório do Chefe do Combate à Espanhola em Sergipe, Dr. Eronides de Carvalho, publicado no jornal “O Estado de Sergipe”, edições a partir de 08 de fevereiro de 1918.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O FIM DA SAÚDE PÚBLICA


ANTONIO SAMARONE
Academia Sergipana de Medicina.

O Ministério da Saúde decretou “estado de emergência” em Saúde Pública. O Nordeste foi surpreendido por uma epidemia de microcefalia, doença incapacitante e sem tratamento. Para agravar, os infectologistas suspeitam que o zika vírus seja a causa. Como esclarecimento, o zika vírus, febre amarela, febre chicungunha e a conhecida dengue são transmitidos pelo mesmo mosquito, o Aedes Aegypti. No momento, o único recurso eficaz para o combate a essas enfermidades é a erradicação do mosquito ou, no mínimo, o seu controle. Essa luta é centenária.
No inicio do Século XX (1902 a 1907), Oswaldo Cruz teve sucesso no controle do Aedes aegypti, eliminando a febre amarela do Rio de janeiro, através das brigadas sanitárias. Com o incentivo da Fundação Rockefeller, nas décadas de 1930 e 1940, foram executadas intensas campanhas de erradicação de Aedes aegypti no Brasil. Em 1947, a Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde decidiram coordenar a erradicação do Aedes aegypti no continente. Em 1956, foi criado o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DENERu), órgão que assumiu as ações de combate à febre amarela e à malária, incorporando o Serviço Nacional de Febre Amarela e a Campanha de Erradicação da Malária.
Em 1958, na XV Conferência Sanitária Pan-Americana, em Porto Rico, foi oficialmente declarado que o Brasil conseguira erradicar o Aedes aegypti. Em 1967, criou-se a Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam), que absorveu as funções do DENERu. No mesmo ano, o mosquito é encontrado no Estado do Pará, e dois anos depois, em 1969, no Estado do Maranhão. Em 1973, um último foco foi eliminado e o vetor, novamente, considerado erradicado do território brasileiro.
Em 1976, entretanto, o Aedes aegypti retornou ao Brasil, em função de falhas na vigilância epidemiológica. Com o fim da SUCAM em 1991, no Governo Collor, a responsabilidade pelo controle das endemias passou para os munícipios, pondo fim a qualquer esperança no controle do Aedes aegypti. Em 1996, o Ministério da Saúde elaborou o Plano de Erradicação do Aedes aegypti (PEAa), cuja principal preocupação residia nos casos de dengue hemorrágica, que podem levar à morte. Quase nada deu certo, a dengue grassou solta durante esses anos. Em julho de 2001, o Governo abandonou oficialmente a meta de erradicar Aedes aegypti do País e passou a trabalhar com o objetivo de controlar o vetor.
Em 2002, foi implantado o Programa Nacional de Controle da Dengue (PNCD), com a seguinte estratégia: elaboração de programas permanentes, desenvolvimento de campanhas de informação e de mobilização da população, fortalecimento da vigilância epidemiológica e entomológica, melhoria da qualidade do trabalho de campo no combate ao vetor, integração das ações de controle da dengue na atenção básica, com a mobilização do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e do Programa Saúde da Família (PSF), utilização de instrumentos legais que facilitem o trabalho do poder público na eliminação de criadouros em imóveis comerciais, casas abandonadas, atuação multissetorial, no fomento à destinação adequada de resíduos sólidos e à utilização de recipientes seguros para armazenagem de água e desenvolvimento de instrumentos mais eficazes de acompanhamento e supervisão.

Portanto, o caminho para o controle ou até mesmo a erradicação (já conseguimos antes), são conhecidos, o que falta é vontade política, responsabilidade, seriedade para se tomar decisões, e recursos para a execução dos trabalhos. Nos oito primeiros meses de 2015, o número de mortes causadas pela dengue no país foi de 693, e já constitui o maior índice anual desde que a doença começou a ser monitorada em detalhes, em 1990. O recorde anterior havia sido atingido em 2013, com 674 mortes. Se não bastasse, estamos diante da epidemia de microcefalia, 739 casos notificados até agora. Vamos aguarda as providências, não basta declarar “estado de emergência em saúde pública”. Chama atenção a indiferença da sociedade. Que Deus nos proteja.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A Saúde Pública em Sergipe (o caso da sífilis congênita).


A Saúde Pública em Sergipe (o caso da sífilis congênita).
Antonio Samarone
Academia Sergipana de Medicina.

A passagem do Partido dos Trabalhadores pelo poder em Sergipe, iniciada em 2001, na Prefeitura de Aracaju, e interrompida com a morte do governador, em dezembro de 2013; destruiu os serviços de saúde existente, que mesmo modestos e com deficiências, funcionavam com regularidade. Ampliou-se a rede física, é verdade, mas rebaixou-se a qualidade dos serviços ofertados a uma faixa do inaceitável.
Com o pretencioso discurso de promover-se uma “reforma sanitária em Sergipe”, o sistema de saúde foi transformado numa máquina eleitoral, os serviços privatizados, o programa de saúde da família sucateado, os recursos drenados para obras, reformando-se e construindo-se dezenas hospitais e centenas de clínicas, com a promessa que ao final da aventura, a população teria um serviço de qualidade.
As consequências visíveis desse aparelhamento são conhecidas dos sergipanos, a saúde chegou ao fundo do poço. Montou-se uma rede centrada em hospitais, ociosa, de custo elevado; as ações preventivas foram desmontadas, implantando-se o modelo assistencial de oferta de procedimentos. Mas não é disso que eu quero falar.
A reforma petista também produziu consequências invisíveis. O abandono dos programas de saúde pública produziu o aumento das doenças objeto dos mesmos. Vamos tomar como exemplo, uma doença grave. A sífilis congênita, transmitida da mãe para o filho durante a gestação, assumiu ares epidêmicos nesta década em Sergipe. Em 2005, quando a notificação passou a ser obrigatória, a taxa de detecção de sífilis congênita em Sergipe era de 0,8 casos por mil nascidos vivos; em 2012, a mesma taxa atingiu 9,7 casos por mil nascidos vivos, segundo dados do Ministério da Saúde; um crescimento de 12 vezes no período. http://www.aids.gov.br/sites/default/files/anexos/publicacao/2012/52537/boletim_sifilis_2012_pdf_26676.pdf
Em 2013, nasceram em Sergipe 34.108 crianças; em 382 delas foram identificadas a sífilis congênita, com 05 óbitos; a taxa explodiu para 11,2 casos por mil nascidos vivos, três vezes superiores a media nacional (4,7 casos por nascidos vivos). Um horror! A meta da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), para a América Latina é uma taxa de 0,5 casos por mil nascidos vivos, em 2015, visando a erradicação. Sergipe está distante desta meta.
O crescimento da sífilis congênita acompanhou o recrudescimento da sífilis, doença tratada, (exceto em sua fase neurológica) com penicilina benzatina (a velha benzetacil), ou seja, uma doença com tratamento barato e eficaz. Vamos à outra indecência: o fornecimento da penicilina benzatina é irregular, com faltas constantes na rede pública. A indústria farmacêutica mundial perdeu o interesse econômico na produção deste medicamento, e como o Brasil não se preparou para suprir o mercado, a saúde pública vem pagando um preço elevado. Além de ser a primeira linha de tratamento contra sífilis, o remédio é ainda usado para tratar outras infecções, como a febre reumática aguda, doença bacteriana que afeta coração, cérebro e articulações.
Os mais atentos estão pensando, se o problema foi decorrente da escassez de penicilina, como a gestão da saúde em Sergipe está sendo responsabilizada? Ocorre que o problema deve-se também a outras variáveis. No Brasil, a sífilis congênita passou de 1,7 casos em mil nascidos vivos, em 2004; para 4,7 casos, em 2013; triplicando a incidência; em Sergipe, no mesmo período, o aumento passou de 0,8 casos, em 2005; para 11,2 casos por mil nascidos vivos, em 2013, ou seja, um crescimento superior a 12 vezes.
Observo uma mudança de rumos na condução da saúde por parte do Estado, a partir de 2014, sendo que os resultados não será de imediato. Desfazer o quiproquó de mais de uma década perdida, se houver continuidade, levará anos, com certo otimismo. 

sábado, 12 de setembro de 2015

ACADEMIA BECO NOVENSE DE LETRAS



Academia Beco Novense de Letras.

Antonio Samarone de Santana.

Até os idos de 1960, a Rua do Beco Novo era o centro cultural de Itabaiana. Entre outras esquisitices, a rua tinha o seu ateu, José Nogueira da Silva, conhecido por Araponga. Menino de pouca conversa, obstinado, autodidata; deixou a escola ao concluir o primário, por não suportar as pancadas da professora Branquinha. A mestra usava e abusava da sabatina, errou qualquer besteira, à palmatória comia no centro. Sem contar os castigos cruéis e humilhantes. Muitos mijavam nas calças, com as suas ações disciplinadora. Araponga desistiu.
Aos 16 anos, Araponga já era um bom sapateiro, apreendeu o oficio com o Pai. Poderia ter parado por aí, casar, criar família, levar uma vida simples, como tantos. Mas ele queria voar, descobriu que igreja católica tinha uma biblioteca, e que emprestava livros de graça. Meteu as caras. Não desconfiava o que iria encontrar. Uma biblioteca católica em Itabaiana, antes do Concílio Vaticano II, certamente estaria repleta de uma literatura religiosa, a vida dos santos, a imitação de cristo, a bíblia, os evangelhos; mas, por tentação de Satanás, Araponga pegou o primeiro livro na estante errada, era um livro de Voltaire. E foi a sua perdição, encasquetou com a filosofia, e não parou mais.
Até hoje me pergunto, o que aquela literatura iluminista estava fazendo na biblioteca do padre? Suponho, hoje, que sendo o padre muito ocupado com a salvação do rebanho, nunca tivera tempo de examinar o acervo literário da sua Paróquia. O certo é que os livros do padre empurraram Araponga para o ateísmo. Araponga leu Rousseau, Descarte, Diderot, alguns discursos do incorruptível Maximilien François Marie Isidore de Robespierre, leu os miseráveis aos 17 anos; percorreu a filosofia alemã, foi aos russos, leu Tolstói e Dostoievsk; não esqueceu de Machado de Assis, e foi um apaixonado por Lima Barreto. E o que ficou disso tudo? Quase nada, tudo muito embaralhado. Araponga continua sapateiro, pobre, ateu, mas guardou um sonho: ser imortal numa Academia de Letras, à semelhança da Académie française, fundada por Richelieu em 1635.
Sempre foi um sonho improvável. Contudo, o mundo gira. Araponga ficou sabendo que estão criando academias de letras em todos os cantos e recantos desse velho Sergipe, soube também, que os critérios para se tornar um escritor, um poeta, pintor, escultor, foram relaxados. Ser artista agora ficou fácil. A arte e o talento nunca existiram. Ou dito de outra forma, todos somos talentosos, o que dar no mesmo. A alta cultura sempre foi uma tapeação das elites. Entre um clássico de Eça de Queiroz e um livro de causos mal escrito, publicado às pressas, a diferença passa a ser uma questão de gosto, tem quem goste de um e quem goste do outro. Tudo é relativo.
No início do ano, Araponga recebeu a visita de um amigo, imortal das novas academias, que conhecendo o seu sonho, não se acanhou em aconselha-lo: - companheiro, por que não publica aquele poema em homenagem a revolução de 31 de março, que você declamou alguns versos na escola de dona Branquinha? Araponga nem lembrava, mas retrucou: - quem sou eu, pobre sapateiro, onde vou encontrar recursos para pagar a edição de um livro? A não ser que eu poste em meu perfil no Facebook. Será se é válido para eu tentar uma vaga numa Academia? O amigo disse que não sabia, e a conversa foi encerrada.
Foram cutucar a onça, Araponga despertou. Agora quer porque quer ser imortal. Postou o poema no Facebook, com boa aceitação: 136 curtidas, 36 comentários (todos a favor) e 11 compartilhamentos. A poesia de Araponga ganhou o mundo. Já participou de um sarau em Aracaju, e recebeu a promessa de um político, que vai arrumar um patrocínio para que a poesia de Araponga vá ao papel. As coisas estão encaminhadas. Araponga está percorrendo escolas, asilos, reuniões de Rotary, quermesse de paróquias, e qualquer espaço onde ele possa declamar a sua arte. Contudo, ainda não alcançou o principal objetivo: ocupar uma cadeira numa academia de letras. E a missão está complicada. Já existem academias nos 75 municípios de Sergipe, academias em alguns povoados, e ele até agora não foi lembrado. Ficar esperando que um ou outro bata as botas, para ele disputar uma cadeira, não é um caminho fácil. A fila é grande, muitos fazendeiros, políticos, gente graúda, todos querendo. Ser imortal em Sergipe é uma glória muito desejada.
Foi diante da crise, da escassez de vagas para a imortalidade, que Araponga encontrou uma saída genial, resolveu criar uma Academia de Letras no Beco Novo, e por que não? Ele será de cara o fundador e presidente; arrumar membros e patronos, com os novos critérios também não será problemas. Não precisa de sede própria, vai se reunir na sede do Rotary, no próprio Beco Novo. Os bodegueiros da rua, ao tomarem conhecimento da iniciativa cultural, já fizeram uma vaquinha, e vão pagar as despesas com edital, livro de ata, registro em cartório, e outros entraves burocráticos. O sonho de Araponga vai se transformar em realidade.

Eu, mesmo já sendo imortal por duas vezes, como natural do Beco Novo, até por uma questão de patriotismo, já aceitei o convite. Betinho, Beijo, Bem-te-vi, Demir de Valdice, Rosa, Nego Véio, Val e Regis de Euclides Barraca, as filhas de Bonito, Salomão, Pindoba, Peba de Justino, Chumbrega, Cabo João Mole, Sampaio, Miguel Fagundes, Rosalvo do Cabo Quirino, gente do Beco Novo é o que não falta, para ter o direito a imortalidade. Araponga, ainda quer ser original, está propondo que a “Academia Beco Novense de Letras, vá além, não seja apenas de letras, e seja a primeira, uma “Academia Beco Novense de Letras, Números e Sinais de Pontuação. Vamos à luta. 

domingo, 30 de agosto de 2015

AS DOENÇAS DO MUNDO


AS DOENÇAS DO MUNDO.

Antonio Samarone
Academia Sergipana de Medicina


As doenças do mundo perderam a sua relevância cultural, passaram a se chamar “doenças sexualmente transmissíveis (DST), surgiu a AIDS, e as temidas doenças venéreas perderam o encantamento, deixaram de simbolizar o pecado, a perda da virgindade masculina, o rito de passagem para a maturidade. Os adolescentes enchiam o peito com orgulho e se gabavam: - “peguei uma gonorreia”, ou, querendo ser discreto: - “porra, como a benzetacil dói”, que todo mundo entendia.  Ninguém mais alardeia que tem gonorreia ou blenorragia...
A milenar gonorreia (gonos = espermatozoide + rhoia = corrimento), pela confusão do exsudato purulento com o sêmen; a mais disseminada, era conhecida na china antiga, citada no antigo testamento e batizada por Galeno. O germe causador só foi descoberto em 1879, pelo médico alemão Albert Neisser, e recebeu o nome de “Neisseria gonorrehoea”, em homenagem ao descobridor. A gonorreia só encontrou tratamento na década de 1930, com as sulfas; e com mais eficácia, a partir de 1942, com a penicilina.
Havia uma crença que a doença voltava com o uso de alimentos reimosos ou carregados, em quem sentasse em cadeira quente, principalmente de barbeiro, ou quem usa-se vestuário de pessoa infectada. Os cabarés eram chamados de pinga pus, por conta da devastação da gonorreia nas “mulheres da vida”.
O intrigante é que a doença não foi controlada, pelo contrário, a incidência tem aumentado muito, mas ninguém se dar mais conta da sua existência. A temível gonorreia não mete mais medo, não assusta, tornou-se uma doença ignorada.
Outra doença do mundo, bem mais nova e bem mais grave, surgida no século XVI, a grande pústula, morbus gallicus, mal napolitano, entre tantas denominações, assustou o mundo. Em 1530, Girolamo Fracastoro, médico e poeta de Verona, publicou seu poema “Syphilis Sive Morbus Gallicus”, no modelo das Geórgicas de Virgílio, onde a doença é descrita como uma punição de Apolo ao jovem e bonito pastor Sífilo, por ter sido insultado pelo mesmo. A fama do poema consolidou sífilis como o nome da doença. A descoberta que Treponema pallidum era a causa da sífilis, ocorreu em 1905, por Fritz Schaudinn e Erich Hoffmann.
A sífilis primária despontava como nome de cranco duro. Mesmo sendo doenças bem menos agressivas, curioso, o medo maior era do cranco mole, conhecido como “cavalo”, causado pelo Haemophilus ducreyi, com pequenas feridas purulentas nos órgãos genitais e que terminavam numa íngua insuportável; e do linfogranuloma venéreo, conhecido como “mula”, causada pela Chlamydia trachomatis, gerando um bulbo purulento na região inguinal. Em Itabaiana, chegou um desavisado com mula, Dr. Pedro Garcia Moreno rasgava, e ainda por cima, não abria mão de um exame da próstata, com o seu enorme dedo rombudo. Tudo pela saúde pública.
A distorção devia-se ao fato do cranco duro “recolher” com o tempo, ficando o infeliz à espera da sífilis secundária; já a mula, os médicos acreditavam que deveria ser “rasgada”, mesmo sem evidencias do menor benefício, e o cavalo causava uma dor insuportável. A sífilis (cranco duro), o cavalo e a mula também saíram de moda, acompanharam a gonorreia. Nunca mais soube-se de alguém conhecido reclamando nem de mula nem de cavalo, mas a sua ocorrência continua avançando.
Claro, a infestação por “chatos”, o popular Phthirus púbis; atingia até as sobrancelhas; a “crista de galo”, causado pelo Papilomavirus humano; essas desapareceram de vez. Para evitar desmentidos, as doenças do mundo desapareceram do universo de preocupação das pessoas, mas continuam vivas e saudáveis, apenas deixaram de ser do mundo. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

MEDICINA COMERCIAL (Do Bastão de Esculápio ao Caduceu de Mercúrio)







Medicina Comercial. 

Antonio Samarone de Santana
Academia Sergipana de Medicina

Para onde está voltada a medicina, a que interesses obedece, a quem serve prioritariamente? Uma resposta romântica, e que agradaria ao senso comum e a autoimagem da corporação, é que a medicina está voltada e atende aos interesses dos pacientes, visando aliviar a sua dor e o seu sofrimento. A medicina artesanal da primeira metade do século XX era a face institucional dessa pretensão. Contudo, a realidade é outra, um pouco mais complexa. Foucault enxergou uma medicina de Estado na Alemanha prussiana; identificou uma medicina voltada para o espaço urbano, na França do Dezenove, e uma outra medicina, focada na força de trabalho, na Inglaterra da revolução industrial. O padre austríaco Ivan Ilich, chamou a atenção do mundo, identificando uma face iatrogênica na medicina oficial, em seu famoso livro “Nemesis da Medicina”.
A partir do final do século XX, a medicina incorporou-se ao mercado, tornando-se uma atividade de peso na acumulação capitalista, representando 10,2% do PIB brasileiro. O cuidado médico assumiu a forma de mercadoria, sob o disfarce de procedimento. O trabalho médico sofreu intensa taylorização, fragmentando-se, e a medicina subordinou-se majoritariamente a lógica do lucro, numa medicina comercial. Quais são as mudanças implantadas pela medicina comercial, e quais as possíveis formas de resistência e superação é a discussão que me interessa.
Não foi pacífico a assunção ao mercado dos serviços de saúde, a venda da força de trabalho via o assalariamento nunca foi bem vista pelos médicos; eles desejavam continuar vendendo os produtos do trabalho diretamente aos pacientes, como na fase liberal. Esse produto era o cuidado médico, muito pessoal, subjetivo, impossível de ser contabilizado numa economia de mercado. Os novos compradores precisaram de um produto padronizado, mensurável, impessoal como qualquer mercadoria, e os cuidados médicos tinham subjetividades em excesso. Médicos e mercado entraram num acordo e o cuidado foi fragmentado em 4.600 procedimentos e, à imagem e semelhança do trabalho fabril, criou-se uma linha de desmontagem do corpo humano, descoordenada, e comandado pela avidez do lucro, normal em qualquer processo de acumulação.
Os empregos dos médicos no Brasil concentrados nos serviços públicos, mas em harmonia com o sistema mercantil da compra de procedimentos. É frequente, mesmo nas instalações dos serviços públicos, o Sistema Único de Saúde (SUS) compre procedimentos, realizando uma remuneração mista, vencimentos mais pagamentos pelos procedimentos realizados. As combinações são inúmeras, raramente se constituindo a remuneração por salários, na renda exclusiva da força de trabalho.
A tendência é o capital ir retirando o comando dos serviços de saúde dos médicos, reduzindo a sua autonomia frente aos consumidores (“pacientes”), e padronizando a sua conduta através dos protocolos. Da mesma forma que os arquitetos e os engenheiros não possuem o poder de condução na indústria da construção civil; os médicos caminham velozmente para essa perda de poder no complexo financeiro industrial dos serviços de saúde.
Com o fim da ditadura militar no Brasil e as profundas mudanças no capitalismo mundial no início da década de 1980; viveu-se no Brasil uma grande incerteza no campo da saúde; politicamente, a conjuntura favoreceu a vitória parcial de uma reforma sanitária numa linha das políticas sociais à moda da social democracia europeia e um pouco dos sistemas estatais de saúde dos países socialista, surgindo o Sistema Único de Saúde (SUS). Um serviço público, universal e gratuito; em direção contrária ao novo capitalismo em ascensão, conhecido popularmente como neoliberalismo, que pregava o estado mínimo, e políticas sociais compensatórias; destinadas exclusivamente aos excluídos do mercado.
O surgimento do SUS, foi um impulso majoritariamente ideológico, conduzido por uma elite pensante do movimento sanitário, quase todos de esquerda, mas que saiu rapidamente dos trilhos sonhados na 8ª Conferência. No momento, a política pública de saúde no Brasil, caminha para a consolidação da alternativa neoliberal de “política compensatória”, sendo o “mais médico” o seu carro chefe.
A medicina comercial apresenta-se como um benefício para os consumidores, pela eficácia dos seus procedimentos, pela prontidão da oferta, pela possibilidade da livre escolha, tornando-se uma segurança para uma clientela crescentemente envelhecida, portanto, consumidora compulsória das referidas mercadorias. Numa realidade hedonista, onde a felicidade foi erigida a condição de direito, alcançado pelo consumo; a saúde e a juventude uma obrigação e o sofrimento tornou-se quase um desleixo ou exceção. O caminho para a saúde passou a ser o consumo de serviços e procedimentos de saúde. Saímos de uma determinação mágico religiosa da saúde para a de consumo de procedimentos médicos. A saúde, cidadania e qualidade de vida estão fora da lógica do lucro da medicina comercial. Esta foi a maior derrota da reforma sanitária brasileira.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

INSTITUTO PARREIRAS HORTAS





Instituto Parreiras Hortas.

Antonio Samarone de Santana.

No começo do Governo Graccho, em 14 de novembro de 1922, a lei n.º 836, em seu artigo 4º, letra K, autorizou a fundação de um Instituto voltado para a Saúde Pública. Em 23 de julho de 1923, a pedra fundamental foi lançada. O projeto era construir, ao mesmo tempo, um Instituto Pasteur, voltado para o combate à raiva; um Instituto Vacinogênico, para a produção da vacina anti-varíola e um laboratório de análise clínica, bacteriológica e química; e que também funcionasse como um centro de pesquisas médicas.

Entregou a responsabilidade a um médico (clínico e dermatologista), cientista experiente, diplomado pelo Instituto Pasteur na França, o ilustre Dr. Paulo de Figueiredo Parreiras Horta. O Instituto foi construído em tempo recorde de apenas oito meses. Em 05 de maio de 1924, ocorreu a sua festiva inauguração.

O Governador do Estado, em seu discurso durante a inauguração do Instituto, expressou uma esperanças: “Sabemos que nossa Capital é tida como uma das cidades mais infamadas, avultando-se novamente o perigo de algumas febres, dizem, de origem desconhecida pelo próprio Oswaldo Cruz, que as denominou como nossas, capitulando como exclusivamente nossos os germes de que elas se geram. Que febres serão essas, que sob o encanto destas paisagens sorridentes, encontrou o seu foco ou o seu berço?


Essa tarefa o Instituto Parreiras Horta cumpriu com competência. Não somente esclareceu a etiologia dessas febres (identificadas como tifóides), como conseguiu o isolamento dos germes e a fabricação de uma vacina oral, por meio de pequenas modificações de um método do Instituto Pasteur. Na verdade, as febres do Aracaju eram o pesado tributo pago pela população mais pobre às péssimas condições sanitárias da Capital.

Essa vacina contra as febres tifóide e paratifóide, que no Brasil foi produzida pela primeira vez em Sergipe, era obtida cultivando-se várias amostras de bacilos tíficos e paratíficos “A” e “B”, em garrafas contendo ágar inclinado. No fim de 24 horas, as culturas eram retiradas da superfície do ágar e emulsionadas em água fisiológica esterilizada. Fazia-se a contagem dos germes, previamente mortos com iodo, no hematímetro de Thoma-Zeiss. A solução era diluída a 2% numa solução decinormal de iodo. Após esse processo, a vacina resultante era distribuída em ampolas de 5, 10 e 20 cm3.

A vacina era empregada via oral, 20 gotas diluídas em água, tomadas em jejum, durante três dias consecutivos. Quanto à eficácia da vacina, hoje sabemos que era quase nula, mas, na época, como houve uma importante redução na incidência das febres, por outros motivos, o sucesso foi atribuído automaticamente à vacinação em massa praticada em Sergipe.

Na visão de Augusto Leite: “O Instituto Parreira Horta dilatou os horizontes da clínica, abrindo para Sergipe uma nova e promissora fase. É amparado no homem de laboratório que o clínico de hoje caminha. O cirurgião e o médico volta e meia lhe vão pedir orientação terapêutica, a confirmação de um prognóstico mal seguro ou a traça de uma doença que é só observação lhes não permite descobrir e autenticar."

Atualmente, esse relevante prédio público aguarda um destino condizente com a sua história, simbolo da introdução medicina cientifica em Sergipe.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

A DOR, O SOFRIMENTO E A SOLIDÃO.



Antonio Samarone de Santana.
Academia Sergipana de Medicina.

A semana passada visitei um amigo que padece de uma neuropatia progressiva. A doença evoluiu suprimindo os movimentos e os controles do sistema nervoso, tirando a autonomia até para beber água. Esta morte lenta está ocorrendo com o padecente em plena consciência, memória perfeita, raciocínio aguçado, só não consegue se expressar, a não ser pelo riso e pelo choro, pelos olhos expressivos e cheios de vida. O meu amigo tem uma neuropatia que ninguém sabe direito o diagnóstico, sempre imprecisos, sempre pode ser isso ou pode ser aquilo. Meu amigo sofre de uma doença negligenciada pela medicina.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define doença rara ou negligenciada como a que acomete até 65 pessoas a cada 100 mil. Em geral, é crônica, progressiva e degenerativa, com frequência levando à morte. A maior parte, 80%, tem origem genética. Nesse grupo estão incluídas anomalias congênitas ou de manifestação tardia, deficiência intelectual e erros inatos do metabolismo. As 20% demais são infecciosas, inflamatórias e autoimunes. Estima-se que no Brasil existem na ordem de 13 milhões de pessoas atingidas com essas doenças. Das cerca de 8 mil, mais de 90% não são tratáveis, a indústria farmacêutica não tem interesse em produzir esses medicamentos. O diagnóstico dessas doenças é difícil, geralmente ocorre em casos avançados e o tratamento consiste em cuidados paliativos.
Quem está cuidando do meu amigo, quem é o seu médico? São vários e nenhum, cada um cuida de um sintoma, de uma mazela, e prescreve um procedimento, uma terapia. Um cuida da fala, outro da depressão, outro da diabetes, outro da hipertensão, outro disso, outro daquilo. Mas quem cuida do alivio do sofrimento, do ser humano, da pessoa; quem avalia o que seria melhor para ele nesse momento? Claro, ninguém! Como ajuda-lo a suportar os últimos dias com dignidade? A medicina não cuida mais das pessoas, a medicina realiza procedimentos.
O meu amigo está tomando prolopa, para os tremores; esomeprazol, para a acidez do estômago; redoxon zinco, vitamina C mais zinco; metformina, para reduzir a glicemia; alopurinol, para reduzir o ácido úrico; striverdi, um brônquio dilatador; oximax, um corticoide; diovan, para hipertensão; clorid sertralina, outro para a pressão; spiriva, para depressão; macrodantina, para evitar infecções, talvez pelo uso frequente de sonda para urinar; DEA, que não sei para que serve, nem vou procurar saber; clorid propranolol, para ansiedade; e cialis, que vocês sabem para que serve. Sinceramente, são 14 medicamentos diários, e nenhum para a neuropatia progressiva. As 9 horas ele toma 12 medicamentos de uma só vez, a cuidadora me observou contente: - “ele engole com facilidade, não me dar trabalho”. Como um organismo, já debilitado, reage a isso?
Tenho uma profunda desconfiança que não estamos no caminho certo. Talvez o que a medicina por procedimentos tem a oferecer aos que precisam aliviar os seus sofrimentos nessas horas, que todos haveremos de passar, não seja um conforto, uma ajuda, uma boa companhia.


Tela: Einsam? (Solidão?), de Martin Kippenberger.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

A SAÚDE PÚBLICA EM SERGIPE (REPÚBLICA VELHA - PARTE QUATRO)


A Saúde Pública em Sergipe (Início da República – parte quatro)

Antonio Samarone de Santana.

Após décadas de conflitos políticos entre pebas e cabaús, entre 1911 a 1917, Sergipe será governado pelo General José Siqueira de Menezes, combatente de Canudos. O sucesso do General com o saneamento básico não se repetiu na estruturação da Inspetoria de Higiene, conforme mensagem dele próprio à Assembleia Legislativa, em 07 de setembro de 1912: “autorizado pela letra ‘f’ do art. 4o, da lei nº 602, de 23 de novembro do ano passado, a reformar a repartição de higiene, nada pude ainda fazer devido à nossa precária situação financeira".
No governo de Siqueira de Menezes será nomeado como Inspetor de Higiene, o Dr. Batista Itajay, que no final substituído pelo Dr. Octaviano Vieira de Melo, nomeado em 14 de maio de 1914, que permanecerá no cargo nos governos de Oliveira Valadão (1914/18) e Pereira Lobo (1918/22).
Manoel Baptista Itajay, nasceu em Lagarto, em 28 de junho de 1859. Formou-se em Salvador, em 18 de dezembro de 1886. Foi Deputado Estadual, Intendente de Itabaiana, Governador do Estado e Inspetor de Higiene, entre 1911 e 1914. Faleceu em 31 de janeiro de 1918, em Aracaju, com 59 anos, e está sepultado no Cemitério Santa Isabel, Aju/SE.
Podemos também situar a pequena importância da Repartição de Higiene, já no final do Governo Siqueira de Menezes, quando analisamos a proposta orçamentária do Estado para ano de 1914. De um total de despesas estimado em 2.153:961$755 réis, apenas 15:573$600 réis seriam consumidos com a saúde pública, ou seja, cerca de 0,72%, índice ainda menor de que os Governos anteriores.
No final do governo Siqueira de Menezes, o já Inspetor de Higiene Dr. Octaviano Vieira de Melo, em relatório publicado no jornal O Estado de Sergipe, em 15/08/1914, assim se manifestou sobre a Repartição de Higiene:  “Instalada, como ainda continua em prédio que não lhe é próprio, de todo arruinado, e fora em absoluto de todas as precisões higiênicas, precisa essa repartição passar por uma completa reforma, e ser aparelhada do material preciso para servir ao fim a que é destinada.
No Governo de Oliveira Valadão (1914/18) teremos duas mudanças importantes na Repartição de Higiene. Primeiro, a sua transformação, em 30 de dezembro de 1915, de Inspetoria em “Diretoria de Higiene e Saúde Pública”, através do decreto nº 618, e a devida aprovação de um novo regulamento. Segundo, a transferência, em 21 de maio de 1916, dos “Serviços de Assistência Pública” do âmbito da Diretoria de Segurança para a Diretoria de Higiene e Saúde Pública. 
O novo serviço de Assistência Pública teve sua regulamentação aprovada pelo decreto nº 645, de 11/01/1917. “Será desnecessário encarecer-vos, senhores Deputados, as excelências de um regular serviço de Assistência, que terá por fim prestar socorros médicos cirúrgicos às pessoas vítimas de acidentes, nos casos de envenenamento, asfixias ou estados mórbidos súbitos, bem como no enterramento de indigentes, no transporte de feridos e parturientes para o hospital ou para as suas residências”. Mensagem de Oliveira Valadão, à Assembleia Legislativa, em 07/09/1916.
Na verdade, o Serviço de Assistência Pública era um similar dos atuais Prontos Socorros, que, por razões até hoje incompreendidas, estava a cargo do Setor Policial, inclusive, era a única repartição que possuía uma ambulância para o transporte de doentes. De acordo com o regulamento, competia à Assistência Pública: a) prestar socorros médicos e cirúrgicos de urgência nas vias públicas, em todos os casos de ferimentos, asfixia, envenenamento ou estados mórbidos súbitos; b)    prestar socorros médicos e cirúrgicos aos doentes da população pobre, inclusive às parturientes e aos loucos, remetendo-os para os hospitais, maternidades ou asilos, quando não se possa tratar a domicilio; c) promover o enterramento dos indigentes depois da verificação do respectivo óbito. O Regulamento previa a cobrança dos serviços de quem pudesse pagá-los.
Na estruturação do novo serviço de assistência, o Governo criou em 09 de novembro de 1917, o “Posto de Assistência Pública”, que, embora subordinado à Diretoria de Higiene e Saúde Pública, possuía direção e pessoal próprios. Para o cargo de Diretor da Assistência foi nomeado o prestigiado médico Dr. Francisco de Barros Pimentel, que permanecerá no cargo até seu falecimento, quando então será substituído, em 30 de abril de 1922, pelo Dr. José Thomaz de Ávila Nabuco.
No seu primeiro ano de funcionamento, o Serviço de Assistência Pública adquiriu uma ambulância para o transporte dos doentes e um carro funerário (rabecão), ambos puxados a cavalos. O serviço de transporte de doentes da Assistência Pública passou a ter tanta importância nas décadas seguintes em Sergipe, que até bem pouco tempo, a população denominava ambulância de “assistência”, confundindo o veículo para o transporte com a repartição.
A Assistência Pública atendeu, de janeiro a agosto de 1918, os seguintes casos: 60 pessoas socorridas nas vias públicas, 166 pessoas transportadas para o hospital, 33 curativos, 59 receitas, 220 guias para enterramentos, 85 enterramentos 345 atestados de óbitos. Como se percebe pelo volume dos serviços prestado, foi fundamental a sua organização, e aponta no sentido da ampliação da competência do que se entendia por Saúde Pública.
No que se refere à aprovação do novo regulamento para a “Diretoria de Higiene e Saúde Pública”, não identificamos grandes mudanças em relação ao Regulamento de 1905. Ocorreu a já citada transformação de Inspetoria em Diretoria, extingue-se o Conselho Geral Sanitário, um retrocesso, e talvez a sua grande novidade: incorporou, em seu artigo 201, os trabalhadores no âmbito da competência de fiscalização da polícia sanitária. É um Regulamento um pouco mais extenso do que o anterior, com 256 artigos.
Ainda no governo Valadão, tivemos uma importante reforma no Lazareto Público (hospital de isolamento), que possuía capacidade de 60 leitos, passando a funcionar de forma permanente desde a epidemia de Peste Bubônica, de 1903. Encontramos certa preocupação com os doentes mentais, que continuavam trancafiados nas cadeias públicas: na mensagem à Assembleia de 1918, o Presidente solicitou recursos para a construção de um pavilhão para alienados no Hospital de Santa Isabel.
Em 17 de março de 1916, a Intendência (Prefeitura) de Aracaju inaugura o seu primeiro Posto de Assistência Médica, visando a atender os indigentes e os desprotegidos da sorte e realizar a distribuição de medicamentos. O Posto funcionava diariamente, das 10 às 12 horas, no prédio da própria Intendência. Esse serviço, com objetivos bem menos abrangentes do que o Posto de Assistência Pública do Estado, representou uma outra tendência na política de saúde, que só irá se consolidar muitos anos depois, a do poder público assumir a responsabilidade da assistência médica à população.

Foto: Oliveira Valadão.