“Nosso corpo, nossas regras...”
Antonio Samarone
Academia Sergipana de Medicina
As mulheres querem seus corpos de
volta. Foi o que assisti ontem na OAB, numa palestra da Dra. Melania Amorim.
Numa convincente e culta exposição, a médica, feminista, pesquisadora e
ativista pela humanização do parto destrinchou os atuais procedimentos
realizados pelos obstetras no ato de partejar, apontando equívocos, humilhações
e maus tratos, lesivos a dignidade das mulheres. Uma verdadeira tourada obstétrica.
Segundo a pesquisadora, o parto
deveria ser um momento divino para as mulheres, um evento natural cercado de
simbologias e experiências emocionais. O primeiro encontro entre mãe e filho
necessita de um cenário cercado de atenção, carinho e liberdade. As mulheres
não podem abrir mão de comandar esse momento. A medicalização do parto,
passando esse comando para os médicos, que determinam os tempos, modos e seqüências,
levando aos extremos de obrigá-las a esquisita posição supina com as pernas
levantadas, presas por suportes, posição de “frango assado”, com o objetivo de
facilitar suas intervenções, precisam ser revistas. As mulheres devem parir na
posição que acharem mais confortáveis e que se sentirem melhor. As posições
onde o próprio feto ajude pela força gravitacional a sua expulsão parecem mais
naturais.
No Brasil, os abusos continuam no
“convencimento” (imposição?) da preferência pelo parto cirúrgico em detrimento
do parto normal, com alegações e justificavas cientificamente inaceitável. Atualmente, 85% dos partos realizados pelos
planos de saúde e 37% dos realizados pelo SUS são cirúrgicos (cesáreas), com consequências
tanto para a mãe como para o recém nascidos, mas de ampla conveniência
financeira para os médicos, que assim podem racionalizar o uso do seu tempo e
arrumar melhor sua jornada de trabalho.
Até o final do século XIX as cesáreas
eram realizadas quando ocorria a morte materna após o sexto mês de gestação,
visando salvar o feto. Era proibido o sepultamento sem a retirada do feto, pelo
menos para batizá-lo. As cesáreas em vivas antes das descobertas da anestesia e
da assepsia eram a certeza da morte por choque, hemorragias e peritonites. A
história do parto é uma das mais dolorosas e traumatizantes das histórias
universais, entregues a parteiras, cirurgiões e cirurgiões barbeiros, pois os
médicos consideravam um ato indigno. Para os menos informados, cirurgiões e parteiros
(obstetras) eram profissões, até o final do século XIX, distintas da profissão
médica. A condenação bíblica pelo pecado original - “parirás teus filhos com
dor e sofrimentos” - continua, com nuanças, sendo executada até hoje.
O próprio deus da medicina,
Asclépio para os gregos ou Esculápio para os romanos, nasceu de uma cesariana.
A ninfa Coronis, mãe de Asclépio, é condenada a morte por ter traído Apolo,
antes da execução, o filho é retirada do seu útero. O imperador Júlio César
promulgou uma lei determinando que, diante do óbito da mãe durante o trabalho
de parto, o médico estaria autorizado a abrir o ventre e salvar a criança. Por
conta dessa determinação do imperador, a cirurgia recebeu o seu nome.
Quando a opção é pelo parto
normal, segundo a pesquisadora, a violência contra a mulher continua. A
parturiente é posta num leito, na posição descrita acima, seus pelos sãos
raspados, um soro com ocitocina é aplicado, para aumentar as contrações e
diminuir o tempo do trabalho de parto. A mulher é obrigada a fazer força, todas
as vezes que o médico emite o comando, e se não atender ou começar a chorar
alto ou gritar de dor, pode ser admoestada com piadinhas e gracejos. “Na hora
de fazer, não reclamou”, “se cale se não eu paro meu serviço”, ou outras infâmias
dessa natureza.
Aqui entra a episiotomia, um
corte lateral que os médicos realizam na vagina, para facilitar a saída do
feto, e que a Dra. Melania, considera uma agressão estúpida, sem evidências científicas, realizado sem o consentimento das mulheres, e que em muitas delas tem
o potencial agressivo do estupro. Este corte cumpre apenas o primitivo papel
dos ritos de passagem, segundo ela. Consultando os colegas obstetras, eles
entendem que a pesquisadora é uma feminista radical que não frequenta as “salas
de partos”, e que desconhece os benefícios para as mulheres do parto hospitalar
sob a tutela dos médicos.
Os defensores do atual modelo
apresentam em sua defesa a incrível redução da mortalidade materna que o parto
hospitalar medicalizado proporcionou. Os que defendem a autonomia das mulheres
e a imediata humanização do parto usam em seu favor algumas evidências
históricas. Até o final do século XIX a principal causa da elevada mortalidade
materna era a febre puerperal, descoberta depois que era causada pelas mãos
sujas dos médicos; e a sua redução só foi possível após o esforço dos mesmos em
aceitarem lavar as mãos com água e sabão antes de cada procedimento.
Citei apenas alguns procedimentos
violentos da atual assistência ao parto, comentados pela Dra. Melania. A
sociedade brasileira, através de uma vanguarda de mulheres, está colocando na
pauta dos direitos humanos a questão da violência obstétrica. O fato da OAB
patrocinar o evento, da palestrante ser aplaudida de pé pela plateia presente
demonstra que elas não estão sós, que a questão precisa ser enfrentada, que os
obstetras precisam submeter-se publicamente a esse debate e apresentarem suas razões,
que os gestores da saúde precisam abrir as portas de suas maternidades. Duas
questões são incontestáveis: as mulheres têm o direito à autonomia sobre os
seus corpos e parir é um evento natural, não é doença...