A Medicina do Capital.
Antonio Samarone
Academia Sergipana de
Medicina
Em outros tempos, os médicos
cuidavam dos doentes, sua principal missão era aliviar o sofrimento humano. Estabelecia
com a sua clientela uma relação fraterna e de confiança, chamada
pretensiosamente de “colóquio singular”. A recompensa não era pagamento, remuneração,
salário, vencimento, nada que parecesse comércio, poeticamente, os médicos
recebiam honorários, aquilo que honra a quem recebe. Era comum o “Deus lhe
pague”, o “abaixo de Deus, o senhor”, e todo o médico tinha um horário em sua
agenda para a filantropia. Com freqüência, os pacientes demonstravam sua
gratidão com mimos: - “doutor, engordei esse capão para o senhor”.
A profissão médica era essencialmente
uma atividade liberal. O segredo, a livre escolha, a confiança e a autonomia do
médico eram intocáveis. Os remédios eram dosados individualmente e a clínica soberana.
O foco do cuidado era o ser humano, em sua individualidade. Após a segunda
guerra, com os avanços do conhecimento, o trabalho médico cresceu em
complexidade, surgiram às especializações médicas, novas tecnologias e a
indústria farmacêutica. A tecnologia
médica foi concentrada nos hospitais.
Uma mudança positiva: a intervenção
médica passou a ter eficácia, em especial, contra as doenças infecciosas.
Deixou de ser apenas psicoterapia. O conhecimento permitiu grande
resolutividade nos atendimentos de urgência. A expansão da cobertura passou a
ser uma exigência democrática. Cresceu o número de escolas médicas, leitos
hospitalares, clínicas, redes públicas (PIASS), INAMPS, SUDS e, finalmente, a assistência
médica tornou-se universal (SUS).
Nesse momento estabeleceu-se uma
polêmica. Com a contratação pelos governos, órgãos de previdência, empresas
médicas, etc., os médicos passaram a condição de empregados, a compor o
exército de trabalhadores assalariados. Um grupo entendeu que isso era um
avanço, e passou a organizar os sindicatos, e a se preparar para as disputas
sindicais, greves, mobilizações, etc. Outro grupo, sediado na Associação Médica
Brasileira (AMB), entendia que essa mudança seria a derrocada, os médicos
deveriam continuar liberais, que essa relação patrão/empregado acabaria com a
livre escolha, com a autonomia, e seria nefasta para a relação médico paciente.
Os médicos sempre resistiram à condição de assalariados, foram empurrados pela
força das relações econômicas.
O crescimento dos serviços
médicos, indústria farmacêutica, insumos, novos equipamentos, os crescentes
investimentos públicos com saúde, transformaram a atenção a saúde num poderoso
ramo dos negócios capitalistas. Além da consolidação do complexo médico
industrial, importante componente do PIB, o Capital financeiro se encarregou de
monopolizar as operadoras dos planos de saúde. A saúde, como qualquer outro
campo de atividade, submete-se as regras do mercado, e o cuidado médico se
transforma em mercadoria.
A medicalização da vida social se
impõe. O trabalho médico foi fragmentado em 4.600 intervenções distintas,
realizadas sem coordenação, com o consumo orientado pela oferta. O cuidado
médico foi repartido em “procedimentos”, denominação que a atividade médica
transformada em mercadoria, passou a receber em seu consumo pelos pacientes. Os
médicos vendem procedimentos. Em parte, os procedimentos são úteis, possuem “valor
de uso”; mas o que determina o seu consumo são os “valores de troca”, como
qualquer mercadoria. A indicação, a freqüência a oportunidade da realização dos
procedimentos saíram do controle do médico, são condicionados pelo tipo de
plano de saúde, pelo poder aquisitivo do paciente, pela cobertura dos serviços
públicos, pela necessidade de amortização do equipamento, etc. etc. Para tranqüilizar
a redução de importância do trabalho médico, a ciência elaborou protocolos, e o
consumo passou a ser legitimado pela ciência...
A maioria desses procedimentos são
exames, implantes e intervenções realizados por equipamentos (trabalho morto),
os mais valorizados, de maior custo. A consulta, forma dominante de trabalho na
fase dos cuidados, passou a ser secundária, mal paga, muitas vezes apenas uma
etapa para viabilização do consumo de outros procedimentos. Como acontece em
outros ramos da atividade econômica, o trabalho foi expropriado do trabalhador,
cabendo-lhe uma pequena tarefa na linha de montagem da vida.
O medico que insistir em cuidar
de seus pacientes de forma holística, humana, integral, voltada para o seu bem
estar e para o alivio do seu sofrimento, enfrentará a barreira inexpugnável da
medicina do Capital. A falência do Programa de Saúde da Família deve-se, entre
outras mazelas, a invasão desta lógica mercantil no trabalho médico, inclusive
no SUS. No Brasil, a medicina foi subjugada pela regras de mercado, e talvez estejam
aí a sua grande inadequação as necessidades de saúde da população.
O médico transformou-se num
executor de tarefas de um negócio cada vez mais lucrativo, mesmo os
assalariados dos serviços públicos padecem dessa servidão. Restam-lhes transformar-se
num pequeno empresário, adestrar-se na realização de um ou dois procedimentos, integrar-se
no mercado, e contentar-se com as migalhas que sobrarem do bolo. Não é possível
entender a progressiva perda de prestígio da categoria médica, a desconfiança
da opinião pública e as hostilidades do governo, se não aprofundarmos na discussão
do trabalho médico no atual estágio da acumulação capitalista.